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Notícias 17 de Out de 2021 EN ES

O texto abaixo é uma conferência, intitulada Brasilien: Der neue Faschismus?, pronunciada em 2 de maio de 2019, no Volksbühne Berlin, dentro da série Democracy Lecture, promovida pela revista alemã Blätter für Deutsche und internationale Politik, em cujas páginas foi publicada no número 64, de junho de 2019. Posteriormente, foi republicada como capítulo no livro Strongmen, organizado por Vijay Prashad (Milano: Nottetempo, 2019), e como livreto, Brasile, un nuovo fascismo? (Roma: Castelvecchi, 2020). Fiz umas poucas modificações para atualizar o texto.

O presidente Jair Bolsonaro, chamado de “mito” por seus seguidores, orgulha-se de ser um homem do passado. Em um de seus discursos, ele declarou que o objetivo de seu governo é o de tornar o Brasil “semelhante ao que tínhamos há 40, 50 anos atrás” – uma clara referência ao período que se estendeu entre 1964 e 1985, no qual o país esteve sob o tacão de uma violenta ditadura militar. Homofóbico, racista e misógino, Bolsonaro reafirmou, em sua posse, o compromisso de “libertar” o Brasil do “socialismo, da inversão de valores e do politicamente correto”, e de “restabelecer padrões éticos e morais” baseados nos princípios da família, “alicerce da nossa sociedade”.

Ex-capitão do Exército e deputado federal por sete legislaturas (ou seja, por 28 anos), Bolsonaro era um obscuro personagem da política brasileira até despontar, em meados de 2017, como candidato à Presidência da República, à frente de um desconhecido Partido Social Liberal (PSL), que então possuía um único representante no Congresso, e ostentando um confuso programa de governo que mescla ultraliberalismo na economia, nacionalismo na política – “Pátria amada Brasil” é o slogan de seu governo – e ultraconservadorismo nos costumes.

Talvez a característica mais evidente – e que melhor explique as ideias de Bolsonaro – seja o seu profundo ressentimento, algo que parece guiá-lo em todas as atitudes, uma espécie de desforra contra a sociedade por sua mediocridade, o que o identifica ainda mais ao “homem comum”. Bolsonaro evoca a ordem militar e foi ele mesmo um oficial insubordinado; evoca o modelo de família e tem cinco filhos de três casamentos diferentes; evoca a religião – seu bordão é “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” – e ora se apresenta como católico, ora como evangélico, segundo as conveniências; vende-se como paladino da moralidade e enrosca-se, ele e sua família, em denúncias de corrupção e de envolvimento com milicianos (organizações paramilitares ligadas ao crime); retrata-se como antipolítico e ganhou a vida como político profissional – carreira, aliás, abraçada por seus quatro filhos adultos, denominados por ele como 01, 02, 03 e 04…

O começo de tudo
No início de abril de 1970, em plena ditadura militar, o serviço de inteligência do Exército Brasileiro obteve, por meio de tortura, informações sobre a instalação de um núcleo de treinamento do grupo de extrema-esquerda Vanguarda Popular Revolucionária no Vale da Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo. Assim, no dia 21 daquele mês, cerca de cinco mil soldados, entre homens do Exército e da Polícia Militar, foram deslocados para lá, iniciando uma enorme operação para capturar os guerrilheiros. Bloquearam estradas, sobrevoaram a mata espessa com helicópteros, bombardearam de avião áreas suspeitas. O resultado foi a prisão de 120 pessoas, entre elas dois guerrilheiros – outros oito escaparam misturados à população.

Na manhã do dia 8 de maio, após intenso tiroteio, os sete guerrilheiros restantes, sob o comando do ex-capitão do Exército, Carlos Lamarca, conseguiram romper uma barreira montada na cidade de Eldorado, iniciando uma fuga épica que só terminaria com a chegada, 41 dias depois, de cinco deles em São Paulo. Posteriormente, Lamarca iria ainda liderar uma série de ações contra a ditadura militar – entre elas, o sequestro do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher, solto, após mais de um mês, em troca da libertação de 70 presos políticos levados para o exílio no Chile –, até ser morto no sertão da Bahia, em 17 de setembro de 1971.

A presença de tropas militares na região causou profunda impressão nos moradores de Eldorado. Alguns, inclusive, participaram ativamente da operação, servindo de guia na mata fechada e fornecendo informações sobre a movimentação dos guerrilheiros. Entre eles, um entusiasmado e desengonçado adolescente de quinze anos, “astuto e turrão”, apelidado de Palmito, por ser branco e comprido, chamado Jair Bolsonaro. Um amigo da época, Cidenei Alves, lembra que eles ficavam conversando com os soldados, extasiados com as armas que lhes eram exibidas. Esse episódio determinaria o futuro de Bolsonaro. Conforme outro amigo, Celso Leite, ele passou a dizer que iria ser presidente do Brasil, e, como os presidentes, na sua perspectiva, eram todos militares, resolveu engajar-se nas Forças Armadas.

Messias
Jair Messias Bolsonaro nasceu em Glicério, um minúsculo povoado do interior de São Paulo, em 21 de março de 1955, e passou parte da infância perambulando com a família de cidade em cidade, até estabelecerem-se em Eldorado. Terceiro de seis irmãos, ele era para se chamar apenas Messias, porque a mãe, Olinda Bonturi, atribuía seu nascimento a um milagre, após uma gravidez complicada, mas o pai, Percy Geraldo Bolsonaro, adicionou Jair ao nome, homenagem a Jair da Rosa Pinto, à época famoso jogador do Palmeiras, time de predileção da comunidade italiana. Bolsonaro descende de uma família originária de Anguillara Veneta, na província de Pádua, os Bolzonaro.

A mãe era dona de casa e o pai, protético. Embora não tivesse formação em odontologia, Percy Geraldo fazia obturações e dentaduras e extraía dentes, o que o levou a ser indiciado pela polícia em 1973, por prática ilegal da profissão. Dois anos mais tarde, ele foi fichado e monitorado pelos órgãos de repressão da ditadura militar por envolvimento com o MDB, único partido de oposição permitido. Percy Geraldo era “boêmio”, mas “enérgico”, como lembra o filho Renato: “Gostava de beber e fumar, mas não permitia que os filhos fumassem e bebessem”. A mãe admite que Jair não tinha muita intimidade com o pai. Ironicamente, Percy Geraldo Bolsonaro acabou emprestando o nome ao colégio militar de Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro, inaugurado em 17 de dezembro de 2018, depois que Bolsonaro já estava eleito presidente…

Oriundo de família pobre, Bolsonaro, “uma das pessoas mais obstinadas que conheci”, nas palavras do amigo de infância Gilmar Alves, passou a estudar “vinte e quatro horas por dia”, almejando entrar na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, sediada em Campinas, estado de São Paulo, objetivo que alcançou aos 18 anos. Logo em seguida ingressou na Academia Militar de Agulhas Negras, em Resende, estado do Rio de Janeiro, onde se formou em 1977. A partir daí, serviu, como oficial, em grupos de artilharia de campanha e de paraquedismo do Exército, até ser eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro, em 1988, sendo então transferido para a reserva remunerada com a patente de capitão.

“Mau militar”
Embora fascinado por uniformes, armas, ordem e autoridade – ele adora posar com o polegar e o indicador em riste, simulando que está atirando –, Bolsonaro não era bem visto por seus superiores no Exército. Em 1983, quando tinha 28 anos e era tenente, o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, em depoimento à Diretoria de Cadastro e Avaliação do Ministério do Exército, afirmou que Bolsonaro “tinha permanentemente a intenção de liderar oficiais subalternos, no que sempre foi repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”.

Em 1986, em pleno processo de redemocratização do país, Bolsonaro foi preso por quinze dias, acusado de “transgressão grave”, por escrever, no semanário Veja, de 3 de setembro daquele ano, um artigo reclamando dos baixos salários pagos aos militares. Um ano depois, em 27 de outubro de 1987, a revista relatava a existência de um plano, chamado operação “Beco Sem Saída”, liderado por Bolsonaro, que consistia numa série de explosões, com bombas de baixa potência, em banheiros de quartéis militares ainda com o objetivo de protestar contra os baixos salários. Em nova matéria, de 1º de novembro, a revista exibiu um croqui mostrando o local onde seria colocada uma bomba na Adutora do Guandu, que abastece de água a cidade do Rio de Janeiro, feito de próprio punho por Bolsonaro.

O Conselho de Justificação Militar, reunido em 19 de abril de 1988, considerou, por unanimidade, Bolsonaro culpado, pedindo que fosse “declarada sua incompatibilidade para o oficialato e consequente perda do posto e patente”. O caso foi levado ao Superior Tribunal Militar que, em julgamento realizado em junho daquele ano, acolheu a tese da defesa de Bolsonaro, segundo a qual as provas documentais eram insuficientes por não permitirem comparações caligráficas, uma vez que no croqui fora usada letra de forma, absolvendo-o – apesar de haver um laudo grafotécnico provando sua autoria. Aproveitando-se do grande prestígio alcançado, principalmente entre as famílias dos militares de baixa patente, no mesmo ano Bolsonaro inicia a carreira política.

O coronel Jarbas Passarinho, ministro em várias pastas durante os governos militares dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Figueiredo, e ainda no governo civil de Fernando Collor, confessou, em entrevista no dia 31 de março de 2011, que nunca suportara Bolsonaro, por ser ele “um radical”: “E eu não suporto radicais, inclusive os radicais de direita”. Já o general Ernesto Geisel, ditador do Brasil entre 1974 e 1979, em depoimento à cientista política Maria Celina d’Araújo e ao antropólogo Celso Castro, colhido entre julho de 1993 e abril de 1994, e lançado em livro em 1997, um ano depois de sua morte, afirmou que Bolsonaro era “completamente fora do normal”, inclusive um “mau militar“.

Caserna
Como uma espécie de compensação psicanalítica por sua atribulada vida na caserna, ao chegar à Presidência da República o ex-capitão Jair Bolsonaro colocou oficiais hierarquicamente superiores sob suas ordens. Além de seu vice, Hamilton Mourão, existem outros 6 mil militares ocupando cargos de chefia ou assessoramento em ministérios e repartições do governo.

Militar graduado durante a ditadura, que aliás nega ter existido, Bolsonaro possui uma verdadeira paranoia em relação aos “comunistas” – categoria que envolve todos aqueles que discordam de seu pensamento. Em discurso no dia 21 de outubro de 2018, logo após o anúncio de que iria disputar o segundo turno contra Fernando Haddad, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Bolsonaro disse a seus apoiadores que eles representam “o Brasil de verdade”: “Essa pátria é nossa. Não é dessa gangue que tem uma bandeira vermelha e a cabeça lavada”. E, para ele, o foco da subversão comunista encontra-se claramente incrustado no sistema de educação. Seu ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, era um entusiasta da luta contra o “marxismo cultural”, definido por seu antecessor na pasta, Ricardo Vélez Rodríguez, como “uma ideologia materialista, alheia aos nossos mais caros valores de patriotismo e de visão religiosa do mundo”.

O guru
O guru intelectual de Bolsonaro é um autoproclamado “filósofo e escritor”, Olavo de Carvalho, cujo perfil no Facebook ultrapassa o meio milhão de seguidores. Antes de se tornar o mentor da extrema-direita brasileira, esse católico ultraconservador e ferrenho anticomunista havia sido astrólogo e membro da Tariqa, uma seita esotérica muçulmana, além de ter tido uma passagem por um hospital psiquiátrico. Trumpista exaltado, Carvalho defende alguns inacreditáveis pontos de vista: coloca em xeque o aquecimento global, o evolucionismo, a vacinação e o heliocentrismo; afirma que não existe combustível fóssil; nega que o cigarro seja um agente provocador de câncer; associa a aids à homossexualidade; condena o aborto em qualquer circunstância; define o feminismo como uma “doença mental”; entre outras coisas. Mas a principal contribuição de Carvalho é a incorporação pelo governo de Bolsonaro de suas teses sobre o “globalismo”.

Em reportagem do semanário Época, publicada em 13 de outubro de 2017, Carvalho assim explica seu pensamento: “A ideia de uma administração mundial, global, unificada, é muito antiga. Um dos projetos desse pessoal: eliminar os carros com motoristas. Isso só é possível se você conectar todos a uma fonte central. Quem tiver posse dessa fonte saberá para onde todo mundo vai e a que horas. Outro: eliminar o dinheiro impresso. Com as operações financeiras feitas eletronicamente tem-se o controle total da vida econômica da população”. Segundo Carvalho, para ter sucesso na empreitada, a “elite globalista” precisa dissolver as células de poder que tentariam resistir a esse projeto, a principal delas a família. Uma arma de destruição da família seria a disseminação do “marxismo cultural”. “Na estratégia de Gramsci [filósofo italiano Antonio Gramsci], a maior parte da militância envolvida não saía pregando ideias comunistas. Ao contrário, ela atacava pontos específicos que representavam pilares da civilização, como a própria ideia de família, moral sexual e as bases do direito penal e civil”. Se os cidadãos não acreditam em nada tornam-se facilmente controláveis pela elite globalista, conclui Carvalho.

Evangélicos
No dia 12 de maio de 2016, enquanto no Brasil o Senado aprovava a abertura de processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, em Israel Jair Bolsonaro era batizado nas águas do rio Jordão pelo pastor da Assembleia de Deus, Everaldo Dias Pereira, presidente do Partido Social Cristão (PSC), legenda à qual ele era filiado na época. Embora Bolsonaro continue afirmando-se católico, sua atual mulher, a terceira, Michele Reinaldo, é evangélica (denominação que no Brasil refere-se principalmente ao fundamentalismo pentecostal e neopentecostal), frequentadora da Igreja Batista Atitude, e o casamento de ambos foi celebrado, em 2013, pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus. Malafaia é, segundo a revista Forbes, a terceira maior fortuna entre os pastores do Brasil – 150 milhões de dólares. O primeiro lugar cabe a Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, com uma fortuna estimada em 950 milhões de dólares, e o segundo lugar a Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, com 220 milhões de dólares. Todos, incluindo o quarto e o quinto lugares no ranking – RR Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, e Estevam e Sônia Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo -, declararam apoio a Bolsonaro.

As igrejas evangélicas representam hoje cerca de 30% da população brasileira – um espantoso crescimento, já que há 50 anos não chegavam nem a 10% – e são donas de um vasto império de comunicação (redes próprias de televisão e de rádio, jornais impressos e sites de notícias). Segundo estudo da Agência Nacional de Cinema, 21% de toda a programação de televisão aberta no Brasil são dedicados ao proselitismo religioso. No pleito de 2018, as igrejas evangélicas elegeram 91 parlamentares (82 deputados federais e nove senadores, inclusive Eduardo e Flávio Bolsonaro, filhos do presidente) e a chamada Frente Parlamentar Evangélica, que reúne, além dos evangélicos, católicos e protestantes, compreende quase um terço dos 594 congressistas. “A Frente é constituída principalmente para preservar os interesses da família monogâmica formada pelo homem e mulher”, explica o deputado Lincoln Portela (PRB-MG), pastor neopentecostal e um dos líderes da Frente.

Conservadorismo
Em seu discurso de posse, no dia 1º de janeiro de 2019, Bolsonaro ratificou o compromisso com a defesa de uma pauta ultraconservadora, que inclui temas como valorização da família tradicional, combate à ideologia de gênero, facilitação do porte de armas e a implantação da Escola sem Partido (“escolas capazes de preparar os filhos para o mercado de trabalho e não para a militância política”, em suas palavras). Em menos de dez minutos, citou Deus seis vezes. Antes de se filiar ao PSL, sigla pela qual foi eleito, Bolsonaro já havia passado por sete agremiações (PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC), e seu desempenho parlamentar sempre foi pífio. Em novembro de 2019, ele anunciou a saída do PSL e a fundação de uma agremiação intitulada ApB (Aliança pelo Brasil), que curiosamente emula o nome do partido de extrema-direita alemão, AfD (Alternative für Deustschland)…

Segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, em 28 anos de atividades na Câmara dos Deputados, Bolsonaro apresentou 171 projetos de lei e Propostas de Emenda à Constituição (PECs) – 57% deles contemplando interesses dos militares ou relativos à segurança pública. No entanto, ele conseguiu aprovar apenas dois projetos de lei – um que estende o benefício de isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados para bens de informática e outro que autoriza o uso medicinal da fosfoetanolamina, substância que ficou conhecida no Brasil como “pílula do câncer”, que testes demonstraram não ter qualquer efeito sobre a doença – e uma PEC que previa a impressão do voto das urnas eletrônicas, ideia barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e que virou, posteriormente, mote de sua pregação golpista.

Bolsonaro concorreu três vezes à presidência da Câmara dos Deputados, em 2005, 2011 e 2017, perdendo todas. Na última, em fevereiro de 2017, um ano e meio antes de se tornar presidente da República, obteve apenas quatro votos, ficando em último lugar entre seis concorrentes. Embora desacreditado entre seus colegas, Bolsonaro ganhava visibilidade junto à população com opiniões polêmicas, impulsionadas ainda mais pela sua aguerrida atuação nas redes sociais – espelhando a estratégia de seu ídolo, Donald Trump. Assim, de alguma forma, ele captou, incorporou e consolidou o lado profundamente reacionário da sociedade brasileira, moldando sua plataforma político-ideológica.

Pesquisa realizada pelo Ibope, a pedido da Confederação Nacional da Indústria, divulgada em março de 2018, mostrava que, para oito em cada dez eleitores, o mais importante de tudo é que o candidato de predileção acreditasse em Deus. Outro estudo, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em abril de 2018, indicava que a sociedade brasileira, numa escala de zero a dez, atinge a nota de 8,1 no Índice de Propensão ao Apoio de Posições Autoritárias. E o Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em Davos, Suíça, constatou, em 2017, que, entre os 137 países que compõem seu Índice de Competitividade Global, o Brasil ficou em último lugar no quesito “Confiança do público nos políticos”.

Escalada
A ascensão de Bolsonaro, de apagado deputado federal a presidente da República, se confunde com a ampliação gradativa do sentimento antipetista na sociedade, alimentado pela chamada Operação Lava-Jato, investigação sobre corrupção nos órgãos públicos durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010). As manifestações de junho de 2013, com sua difusa pauta de reivindicações e ausência de lideranças, marcam o início da polarização da sociedade brasileira, que se acirraria em 2014 com a apertadíssima reeleição de Dilma Rousseff (51% dos votos válidos) e as jornadas contra a realização da Copa do Mundo. Estimulados por uma campanha inquisitorial dos grandes conglomerados de imprensa e por fake news nas redes sociais, os protestos das camisas verde-amarelas contra o PT acabariam redundando no impeachment de Dilma em 2016, golpe parlamentar patrocinado pela direita tradicional.

No entanto, com vários de seus dirigentes também envolvidos em denúncias de corrupção, a direita tradicional, mesmo contando com o prestígio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não conseguiu arregimentar um nome forte para se contrapor a Lula da Silva, que aparecia em todas as pesquisas como o preferido dos eleitores. Aproveitando-se deste espaço vazio, o ex-capitão e “antipolítico” Jair Bolsonaro apresentou-se como o candidato “contra tudo isso que está aí”, prometendo, com seu discurso extremado e simplista, “hierarquia e disciplina para alcançar a ordem e o progresso”. Em janeiro de 2018, Bolsonaro já surgia em segundo lugar na corrida eleitoral. O problema é que, mesmo sob fogo cerrado, Lula mantinha-se imbatível em todas as projeções dos institutos de pesquisa.

No dia 5 de abril, a cinco meses das eleições, o na época juiz federal, Sérgio Moro, responsável pelo julgamento dos processos da Operação Lava-Jato, expediu ordem de prisão contra Lula, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, determinando o cumprimento imediato da pena a que tinha sido condenado de 12 anos de prisão – ainda que o assunto fosse motivo de extensa controvérsia jurídica. Preso, Lula continuou à frente das pesquisas – em agosto, contava com 39% das intenções de voto contra 19% de Bolsonaro. Até que no dia 6 de setembro, o ex-capitão foi vítima de uma facada no abdome, no interior de Minas Gerais, episódio nunca totalmente esclarecido, o que causou enorme comoção num eleitorado já bastante sensibilizado pela radicalização do pleito. Hoje sabe-se que Moro, à frente da Operação Lava-Jato, cometeu inúmeras ilegalidades no processo, empenhando-se, partidariamente, pela criminalização de Lula – decisões que foram anuladas pelo STF, em março deste ano.

Após perder vários recursos junto ao STF, na tentativa de livrar Lula da prisão – o que só ocorreu em novembro de 2019 -, o PT lançou a candidatura de Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, nome desconhecido do grande público, no dia 11 de setembro, cinco dias após o atentado contra Bolsonaro. A primeira pesquisa realizada após os novos fatos – feita no dia 20 de setembro – já mostrava Bolsonaro à frente, com 28% das intenções de voto, e Haddad em segundo, com 16%. Nesta altura, as eleições tornaram-se uma disputa passional entre eleitores antipetistas e eleitores contrários às teses defendidas por Bolsonaro. No final, Bolsonaro elegeu-se com 55% dos votos válidos – equivalente a 39% do total do eleitorado, expurgados os votos nulos e brancos e as abstenções – e o juiz Sergio Moro tornou-se seu ministro da Justiça e eminência parda, até abril de 2020, quando se desligou do governo.

Ultraliberalismo
Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro, confessando-se ignorante em termos de economia, antecipou que daria carta branca a Paulo Guedes, um economista formado pela universidade de Chicago, discípulo do pensador Milton Friedman, e um dos fundadores do Instituto Millenium, organismo inaugurado em 2005 sob o patrocínio de grandes empresas da indústria, do agronegócio, do comércio, da imprensa e do sistema financeiro, com o propósito de disseminar a cartilha ideológica ultraliberal. Considerado como uma espécie de superministro de Bolsonaro, em seu discurso de posse Guedes afirmou: “Depois de trinta anos de aliança política de centro e esquerda, agora há uma aliança entre conservadores, em princípios e costumes, e liberais, na economia”.

Um ponto defendido como “valor” pelo Instituto Millenium é o da meritocracia, “premiação ao esforço individual”, que soa irônico num país considerado um dos dez socialmente mais desiguais do mundo. Mas Bolsonaro é um fã incondicional da meritocracia. Empenhado em desconstruir os importantes avanços dados sob os governos petistas (2002-2016) no campo das políticas afirmativas, Bolsonaro pensa que “quem usa cota está assinando embaixo que é incompetente”, como disse em entrevista em 4 de abril de 2012 à TV Bandeirantes. Ele chama as políticas afirmativas de “coitadismo”: “Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino. Vamos acabar com isso”, bradou no dia 23 de outubro de 2018, em entrevista à TV Cidade Verde. No campo, Bolsonaro avisou que paralisaria a já morosa reforma agrária e que criminalizaria como “terrorismo” as ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), cujos membros são chamados por ele de “bandidos”. Bolsonaro deixou claro ainda que, sob seu governo, “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola”, conforme pronunciamento no dia 3 de abril de 2017, no Clube Hebraica, do Rio de Janeiro.

A agenda ultraliberal na economia e ultraconservadora nos costumes aproximou Bolsonaro do líder da nova extrema-direita, o norte-americano Steve Bannon, estrategista da campanha vitoriosa de Trump, e idealizador do The Movement, organismo que propaga as diretrizes da chamada “direita alternativa” no mundo. Em 4 de agosto de 2018, um dos filhos de Bolsonaro, Eduardo, deputado federal por São Paulo, encontrou-se com Bannon nos Estados Unidos e escreveu em seu twitter: “Tivemos uma ótima conversa e compartilhamos a mesma visão de mundo. Ele disse ser um entusiasta da campanha de Bolsonaro e estamos certamente em contato para unir forças, especialmente contra o marxismo cultural”. Em 27 de novembro daquele ano, Eduardo compareceu à festa de aniversário de Bannon, na companhia de seu amigo Filipe Martins, seguidor de Olavo de Carvalho, e que considera o ex-estrategista de Trump “genial” – Martins tornou-se assessor de Bolsonaro para assuntos internacionais.

O jornalista espanhol Javier Lafuente assim descreveu, no jornal El Pais, as similitudes entre as estratégias utilizadas pela equipe de Bolsonaro e as de Bannon para a campanha de Trump: “Uso da linguagem tosca a custo zero. Contínuas críticas aos meios de comunicação tradicionais, enquanto constrói os seus próprios e faz um uso incomparável das redes sociais para obter seus fins. Em todos os casos, prima por um componente nacionalista e um culto à personalidade que supera o de seus rivais. Como Trump na campanha, Bolsonaro também se valeu de seus filhos como porta-vozes”.

Dinastia
A pregação de ódio e intolerância de Bolsonaro – “Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse, referindo-se à oposição, no dia 21 de outubro de 2018 – tem a continuidade garantida dentro do próprio clã: seus três filhos adultos já possuem sólida carreira política e todos comungam com o pai o ideário de extrema-direita. Filhos do primeiro casamento de Bolsonaro – com Rogéria Nunes Braga -, eles se lançaram precocemente na política, bateram recordes de popularidade e participam ativamente das decisões do pai, interferindo em todos os assuntos do governo, seja por meio de entrevistas, seja através de comentários nas redes sociais, seja influenciando diretamente na formulação de políticas públicas.

O mais velho dos filhos, Flávio, o 01, nascido em 1981, elegeu-se senador em 2018, com 4,4 milhões de votos, após quatro mandatos consecutivos de deputado estadual no Rio de Janeiro, e hoje tem seu nome vinculado à prática de corrupção e elo com milicianos. Carlos, o 02, nascido em 1982, considerado o “pitbull da família”, aos 17 anos já estava na Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro, o mais jovem vereador eleito da história do Brasil, reconduzido em 2016 como o mais votado daquelas eleições – novamente reconduzido em 2020, com 70 mil votos. Eduardo, o 03, nascido em 1984, foi reeleito em 2018 pelo estado de São Paulo, sendo o deputado federal mais votado da história do Brasil, com 1,8 milhão de votos.

Bolsonaro ainda tem mais dois filhos, de dois outros casamentos. De sua relação conturbada com Ana Cristina Valle – que inclui ameaças de morte, fuga para o exterior e pedido de asilo – nasceu Renan, em 1998, que se apresenta, em seu perfil no Facebook, como “de direita, estudante de Direito e parte do futuro da nação”. De seu casamento com Michelle Reinaldo nasceu Laura, em 2010: “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”, confessou em 3 de abril de 2017.

Esse, nosso monstro particular, é que está conduzindo o Brasil para um beco sem saída…

Fonte -> https://rascunho.com.br/liberado/o-nosso-monstro-particular/

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