Em nome dos pais - Censura não!

exposed 7 de Jun de 2023

Saudações povo brasileiro,

Feliz aniversário, Flávia Gonçalves Moraes Bruno!

Hoje republicamos a série de reportagens "Em nome dos pais" que você censurou. No final da matéria deixaremos o seu WhatsApp para que a população possa te lembrar do seu crime, ops, aniversário. Enquanto você estiver curtindo a sua festa, não esqueça das milhares de crianças que não poderão ter momentos como esse por conta de escolhas como a que você tomou. Pense como deve ser ter em sua festa um dos seus abusadores, o aniversário é uma das principais festas infantis que uma criança pode participar, no entanto, a magia da festa acaba quando ela vive com seu algoz. Quando você deveria julgar em prol delas, decidiu entrar no esquema e agora crianças estão na casa de seus abusadores. Nossos parabéns mais uma vez por mostrar o que é justiça no Brasil.

Retirar a reportagem do ar é, além de censura, uma maneira de tirar a chance de que nós reconheçamos o crime que ocorre, com embasamento legal, nos corredores dos fóruns de todo Brasil. A série de reportagens é fundamental para compreendermos o cenário que nossas crianças vivem ao denunciar seus abusadores. Além de explicar, de maneira simples e muito bem investigada, os problemas e absurdos da Lei de Alienação Parental.

Com o pretexto mentiroso de que a reportagem expõe informações de um caso que corre em segredo de justiça, a juíza decidiu que os textos e vídeos deveriam ser retirados de todos os sites e plataformas digitais. Na decisão ela também diz que o direito de liberdade de imprensa colide com direitos fundamentais, como se a reportagem estivesse expondo a criança a risco, algo que não é real já que existe a preservação da imagem e nome da família envolvida no caso descrito. Uma decisão totalmente parcial se pensarmos no lado em que ela está nessa história, já que a reportagem se encarrega de denunciar juízes e promotores que utilizam da lei para garantir a impunidade de abusadores e estupradores. Ninguém quer ficar com a fama de que defende essa atrocidade não é mesmo? Então a "querida" resolveu utilizar do seu poder, ao invés de cumprir com o seu dever.

Na matéria destacamos dois nomes importantes além de Flávia, primeiro temos Margot Chrysostomo Correa, outra juíza que aparece no primeiro vídeo da série força a psicologa a cometer mentiras em relação à mãe, e no fim, atribui a maldita lei de Alienação Parental. Em nossas investigações sobre esta juíza, ficou claro que a mesma odeia pobres, uma vez que todos os seus julgamentos são a favor dos ricos. O segundo nome a ser destacado é Glicia Barbosa de Mattos, uma Psicóloga do Tribunal de justiça do Rio de Janeiro, que merece uma atenção especial, e em breve terá uma operação só dela, leia a parte 4 para entender mais sobre ela.

Conteúdo sensível: relatos sobre abuso infantil.

Parte 1

Cássia não consegue falar da filha sem chorar. Emoção compreensível para uma mãe que conta ter ouvido da criança, com apenas 3 anos de idade, que o pai lhe fazia “cosquinha no bumbum e na pepeta”. Algumas atitudes de Leonardo já tinham levantado suspeitas. “Ele trancava a porta do quarto quando estava com a criança e a chamava para vê-lo tomando banho”. Por isso, quando ouviu o relato da filha, foi à delegacia e denunciou tanto a suspeita de estupro de vulnerável contra a criança quanto uma tentativa de estupro que a mãe diz ter sofrido após a separação.

O registro de ocorrência feito em janeiro de 2014 foi o estopim dos problemas de Cássia e da filha. A mãe foi acusada pelo ex de alienação parental. A prática, cuja existência é contestada por especialistas, consistiria em destruir o vínculo da criança com o pai e manipulá-la para contar abusos que não ocorreram. A falsa teoria sustenta que relatos feitos pelas vítimas à polícia, ao conselho tutelar, a médicos, a psicólogos e a assistentes sociais seriam fruto de falsas memórias implantadas pela mãe.

A Lei de Alienação Parental foi sancionada em 2010. Ela se baseia em uma síndrome de mesmo nome nunca reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e criticada pelos conselhos de psicologia e assistência social brasileiros, além do Conselho Nacional de Saúde. Segundo a lei, que existe apenas no Brasil, de acordo com quatro entrevistados, são alienadores quem interfere na formação psicológica das crianças – segundo a teoria que a sustenta, implantando nelas falsas memórias. Por isso, essas pessoas devem ser punidas com multa, terapia compulsória ou perda da guarda dos filhos.

Para a psicanalista Ana Iencarelli, especializada no atendimento a crianças e adolescentes sobreviventes de abuso, é impossível implantar lembranças inventadas na memória de crianças, devido à forma como se dá seu desenvolvimento cognitivo. “Na infância, a capacidade de pensar depende do raciocínio concreto. A criança precisa experimentar para adquirir a memória. Precisa pensar numa coisa do universo dela”, explicou. Mas a justiça brasileira desconsidera essa informação.

Cássia perdeu a guarda da filha em 2017, três anos após sua primeira denúncia. A decisão foi da juíza Fabiana da Cunha Pasqua, da 7ª Vara de Família da Comarca de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Amparada por laudos da psicóloga Alessandra Rodrigues de Alvarenga e da assistente social Camila Pessoa, a magistrada ressaltou na sua sentença que havia “de um lado, o pai, sofrendo com a ausência da criança […] e, de outro, a mãe insistindo que a menina fora abusada”.

Por isso, avaliou a juíza, a alternativa mais segura era a criança, então com 7 anos, morar com os avós paternos – na mesma casa onde vivia o homem denunciado por abuso. Pasqua ignorou, por exemplo, o que a menina havia falado em sessões com a sua psicóloga, contratada pela mãe. De acordo com um relatório e o depoimento da profissional em audiência, a criança se recusava a falar do pai e demonstrava ansiedade e angústia quando mencionava que ia encontrá-lo. A psicóloga pediu que ela escrevesse, e foi isso que ficou registrado no papel: “ele pôs a língua na minha pepeca”, “ele mostrou o pipiu pra mim” e “ele mexeu na minha pepeca”.

Mesmo assim, a justiça afastou a criança da mãe, considerada alienadora. Cássia só poderia ver a filha uma vez por semana, em visitas de até uma hora supervisionadas dentro do fórum. Foi dessa forma por quase dois anos, até que, em 2019, ela conseguiu o direito de ficar com a criança das 9h às 18h, em domingos alternados. Ela contou que bastaram dois meses desse contato estendido para ouvir da filha que o pai estaria abusando dela à noite, quando os avós dormiam.

Cássia denunciou novamente o ex-marido por estupro de vulnerável e, dessa vez, conseguiu uma liminar que lhe dava a guarda provisória. Mas em menos de dois meses a juíza Pasqua determinou o retorno da criança à casa dos avós, agora amparada por laudos da psicóloga Fernanda Simplício Cardoso, da assistente social Andreza Rodrigues de Avelar e por um parecer da promotora Andrea Mismotto – nenhuma delas levou a sério o depoimento da criança. Sobre a nova denúncia, a promotora Mismotto afirmou que os “indícios de cometimento do crime pelo pai são frágeis”.

Hoje, a filha de Cássia é uma adolescente de 12 anos e só pode ver a mãe em domingos alternados, sob a vigilância de uma pessoa de confiança de ambas partes.

Esse caso resume parte das injustiças que o Intercept vai expor na série “Em nome dos pais”, que será dividida em três reportagens e um minidocumentário, além de um texto para assinantes da nossa newsletter. Para preservar as crianças, vamos alterar os nomes dos seus familiares e revelar apenas a identidade dos membros do sistema de justiça que atuaram nos processos. Com base em documentos, vídeos, áudios e autos de ações judiciais a que tive acesso com exclusividade, mostraremos quem são os juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais que estão tirando filhos de suas mães para entregá-los a pais acusados de estupros de crianças ou de violência doméstica.

Pseudociência pró-pedofilia

Os rastros dessa crueldade aparecem em laudos, pareceres e sentenças há pelo menos 12 anos, desde a sanção da Lei de Alienação Parental. No papel, homens e mulheres poderiam ser alienadores. Na prática, as mães é que são majoritariamente penalizadas, principalmente aquelas que denunciam os pais por abusos.

Em ao menos 215 processos que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça até novembro de 2022, homens condenados por abuso sexual contra crianças e adolescentes alegaram que as mães das vítimas estavam praticando alienação parental. O levantamento foi feito pelo juiz Romano José Enzweiler, um dos poucos magistrados que criticam publicamente a legislação. Junto à advogada Cláudia Galiberne Ferreira, ele escreveu um livro desmontando a falácia da alienação parental.

Segundo Enzweiler e Ferreira, a lei é machista e tem servido tanto para livrar homens de acusações de violência sexual ou doméstica, quanto para inibir denúncias desse tipo, devido ao medo da mãe de perder a guarda da criança. Há razão para o temor. “Em muitos casos, as sentenças punem a verdadeira vítima, a criança, e aplicam pena desproporcional, com a reversão da guarda e a proibição de acesso da mãe ao filho, o que não ocorre nem com mulheres presas, acusadas de crimes hediondos”, seguiu o magistrado.

Maria Berenice Dias, advogada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, discorda que a lei prejudique as mulheres. Ela é desembargadora aposentada do Tribunal do Rio Grande do Sul e foi uma das primeiras magistradas a usar o termo Síndrome de Alienação Parental em suas decisões. “As mães [são as mais denunciadas por alienação parental porque] ficam com a guarda dos filhos, de modo geral. É um dado cultural. E elas nutrem esse sentimento, de achar que o pai não sabe trocar fralda, não vai saber dar mamadeira, que ele não sabe cuidar. Homens acusados de abuso sexual, violência doméstica e devedores de pensão não são favorecidos pela lei de maneira nenhuma”.

A Síndrome da Alienação Parental foi muito conveniente para quem a criou – um psiquiatra que defende abertamente a pedofilia.

A Lei de Alienação Parental, contudo, se baseia em falsas teorias da década de 1980 do psiquiatra Richard Gardner, citado no texto inicial do projeto de lei, que reproduz um artigo de 2006 escrito por Dias. Para a psicanalista Iencarelli, é um equívoco considerar as ideias dele. Gardner, disse ela, apenas rebatizou como Síndrome de Alienação Parental o comportamento comum – e passageiro – de os ex-parceiros usarem a criança “como moeda de troca” ao fim de uma relação. “Ele pegou esse momento emocional e tipificou como uma alteração psíquica que ele atribui [apenas] à mãe. Ele diz que a mulher, frustrada, vai desenvolver a alienação”.

A teoria foi muito conveniente ao trabalho do psiquiatra, que produzia laudos para defender pedófilos, segundo Romano e Ferreira. O estadunidense se manifestava abertamente a favor da pedofilia e criticava a “atitude exageradamente punitiva e moralista em relação a relações sexuais entre adultos e crianças”, como afirmou em um de seus livros. Nessa mesma obra, ele argumentou que o sofrimento de vítimas de abuso infantil só existe porque “nossa sociedade reage de forma desproporcional à pedofilia”. Em outro livro, Gardner escreveu que as crianças “são naturalmente sexuais e podem seduzir adultos em encontros para iniciarem-se sexualmente”.

A advogada Dias, que atualmente defende homens em processos de alienação parental, considera irrelevante o histórico de Gardner. “Todos nós conhecemos a campanha de desqualificação feita, principalmente, por pessoas que estão com a separação mal-elaborada e que agem para atingir o outro. Não deve acabar com a lei por causa de quem é a pessoa que inventou o nome”, defendeu.

São as ideias misóginas de Gardner, contudo, que têm norteado as decisões de reversão de guarda no Judiciário brasileiro – mas não só isso. Segundo Ferreira, profissionais do direito, da psiquiatria, da psicologia e do serviço social estão sendo doutrinados desde que a Lei de Alienação Parental entrou em vigor. “É uma lavagem cerebral. Não tem contraponto, ninguém diz que essa síndrome não é reconhecida”, criticou. “A mera acusação de alienação parental vira uma verdade absoluta, porque essa pseudociência passou a ser ensinada nas faculdades como realidade incontestável”.

De fato, existem poucos trabalhos acadêmicos brasileiros que questionam a ideia da alienação parental, assim como dados sobre as consequências da lei. Há, no entanto, alguns levantamentos feitos em tribunais de segunda instância que dão indícios do machismo da legislação. Um artigo de Sheila Stolz e Sibele de Lima Lemos, membros do Grupo de Pesquisa Direito, Gênero e Identidades Plurais da Universidade Federal do Rio Grande, mostrou que, em mais de 90% das 118 decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul analisadas em 2019 e 2020, são mulheres as acusadas de alienação.

Os processos que envolviam denúncia de abuso sexual correspondem a quase 23% das decisões analisadas, e mais da metade delas tinha laudos e provas do abuso. Mesmo nessas situações, uma a cada cinco mulheres perdeu a guarda das crianças para os homens. As que conseguiram ficar com os filhos eram obrigadas a levá-los para visitar o pai, sob ameaça de serem denunciadas por alienação parental e perderem a guarda. Para Dias, “há mentira” nas histórias de mães que tiveram que entregar filhos para pais abusadores. “De modo geral, 99% dessas alegações nos processos de alienação parental são falsas”, ela alegou, sem citar fontes.

Outro estudo revelou que as mães são as acusadas de alienação, nos processos que envolvem esse tema no tribunal de Minas Gerais, em mais da metade dos casos em primeira instância e em seis a cada 10 ações que chegam à segunda instância. Dos processos que envolvem, de um lado, acusações de abuso sexual contra crianças e adolescentes e, do outro, acusação de alienação parental, os magistrados foram convencidos de que a mãe é uma alienadora em 62% dos casos na segunda instância.

Dias mais uma vez contesta a informação. “É muito raro haver qualquer penalização pela prática de alienação parental. Por mais que seja comprovado que a mãe pratica atos de alienação para afastar, nem pena de advertência a gente consegue”, afirmou.

Crime quase perfeito

As mesmas injustiças evidenciadas pelos levantamentos nos tribunais do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais acontecem em todo o Brasil, como revelam os 11 processos que investiguei para a série “Em nome dos pais” – todos recheados de laudos, pareceres e decisões questionáveis. Em muitos casos, os homens são inocentados por falta de provas – que estavam no processo o tempo todo, mas foram ignoradas. Foi o que aconteceu no caso de Cássia.

O exame de corpo de delito na criança de 3 anos, em 2014, identificou uma “esquimose de cor arroxeada” na sua vagina. O pai, Leonardo, disse que ela poderia ter se machucado na bicicleta ou descendo do berço sozinha. A explicação pareceu convincente para a polícia, que não identificou a descrição de ações diretamente relacionadas à lesão.

A escuta qualificada da criança, na qual ela contou para psicólogos da delegacia que o “papai colocou a mão na minha pepeta”, também foi desprezada. A delegada Isabella Franca destacou que a frase foi dita por interferência da avó, que acompanhava a criança e a incentivou a repetir o que teria dito antes para a mãe. Franca também lembrou que a denúncia de Cássia foi feita no mesmo dia que o pai entrou com pedido de divórcio. Entre se aprofundar no caso ou concluir que tudo não passava de falsa denúncia de uma mulher vingativa, a delegada optou por salvar Leonardo da investigação.

Livre da polícia, ele alegou estar sendo vítima de alienação parental e pediu a guarda da filha na Vara de Família em setembro de 2015, enquanto outro processo corria na Vara Criminal. Em todas essas instâncias, contudo, a vantagem sempre esteve com o pai. Para a psicanalista Iencarelli, esse é o tipo de crime quase perfeito, pois não deixa rastros facilmente detectáveis e basta duvidar da palavra da criança e da mulher.

Em um relatório psicossocial produzido numa ação penal de medida protetiva em julho de 2015, a psicóloga Maria Cristina Leão disse que “não constataram evidências sobre a ocorrência do suposto abuso”. No entanto, nesse mesmo documento, a psicóloga admite que a criança ficava apreensiva quando via o pai e pedia para estar com a mãe.

As demonstrações de que algo estava errado também eram dadas pela criança na escola. Seu desenvolvimento pedagógico estava estagnado, segundo um relatório assinado pela coordenação de educação infantil em agosto de 2015. O documento diz ainda que, logo após as visitas ao pai serem retomadas, a menina foi vista no banheiro tirando água do vaso sanitário e lavando a boca. Levada para a coordenação, ela “diz que está com medo e verbaliza seu encontro” com Leonardo. “Ele fez coisa feia comigo. Não lembro direito, mas é coisa errada. Quando estava na sala, chamei minha mãe, minha avó e meus tios, mas ninguém me ajudou”. Na mesma semana, a criança correu atrás dos colegas, sugerindo que beijassem sua boca.

Segundo informou a psicóloga da menina em um relatório de novembro de 2016, a criança tinha dificuldade para falar sobre os abusos, então ela propôs que escrevesse – foi quando a criança botou no papel que o pai “pôs a língua na minha pepeca”. Alguns meses depois, inquirida pela a juíza Pasqua, a psicóloga respondeu que não acredita que a escrita tenha sido sugestão ou influência de alguém, pois “dificilmente a criança ensaiaria o que escrever”.

O incômodo da menina por ter que encontrar Leonardo consta também em um relatório de maio de 2020 do Conselho Tutelar, que resgata o histórico de atendimento à criança desde 2016. O documento descreve que, em abril de 2017, ela estava inquieta e não queria ver o pai, porque ele “insistia em querer beijar sua boca e apalpar seu bumbum”. Ela disse que tinha combinado com “as tias do fórum” para ficar boazinha com o pai, senão a mãe seria presa. Ela também não podia contar que ficava sozinha com ele. Segundo o relatório, a criança só contou o combinado depois que os conselheiros prometeram não falar para ninguém. Ela confidenciou ainda que havia contado para “as tias” que o pai havia machucado sua mão.

As “tias do fórum”, segundo o relatório, eram a assistente social Camila Pessoa e a psicóloga Alessandra Rodrigues de Alvarenga. Um relatório assinado por elas em maio de 2017 favoreceu Leonardo. Nele, Pessoa defendeu a reversão da guarda e Alvarenga disse que as “condutas maternas podem ser identificadas como atos de Alienação Parental que vem interferindo na possibilidade de convivência entre pai e filha”.

Conversas gravadas pela mãe dão indícios da parcialidade de Alvarenga e Pessoa, cujos laudos embasaram a decisão da juíza Pasqua de dar a guarda da criança aos avós. De acordo com a transcrição de um dos áudios que está nos autos do processo, Pessoa sugere – indicando que tem anuência de Alvarenga – que Cássia retire a medida protetiva contra ele. “Pelo que a gente está entendendo, você também está interpretando que o que aconteceu [o estupro que disse ter sofrido após a separação] foi algo pontual da relação de vocês. Então, o contexto que pedia a medida protetiva naquela época, se ele não cabe mais, para que manter?”.

Depois disso, elas foram substituídas no processo pela psicóloga Fernanda Simplício Cardoso e a assistente social Andreza Rodrigues de Avelar. Mas as coisas não melhoraram – mesmo diante das novas suspeitas de abuso sexual contra a criança.

Abuso ‘supervalorizado’

Afilha de Cássia tinha acabado de completar 9 anos de idade e as duas já podiam se encontrar a cada 15 dias para ficar o domingo inteiro juntas. Foi quando a mãe disse ter visto a calcinha da filha cheia de pomada. De acordo com o boletim de ocorrência registrado em 19 de maio de 2019, a criança teria dito a ela que a avó sabia do que acontecia e cuidava “com pomadinha para aliviar a ardência”. O último abuso teria acontecido dois dias antes.

Cássia decidiu que não entregaria mais a filha e conseguiu com o juiz plantonista Renato César Jardim a guarda provisória, mas durou pouco tempo. O juiz aposentado Geraldo Luiz Ribeiro – que foi membro do Judiciário de Minas Gerais até 2015 – assumiu a defesa de Leonardo justamente nessa época. A mãe acredita que a influência do novo advogado contribuiu para que as coisas se complicassem ainda mais.

Poucas semanas depois de o juiz aposentado assumir a defesa de Leonardo, a promotora Andrea Mismotto escreveu um parecer em que desprezava o depoimento da criança em uma oitiva especializada. Na sua avaliação, a “versão da vítima está longe de ser verossímil” e suas informações “parecem forjadas”. Uma das coisas que a promotora considerou “fora da curva” foi a declaração de que Leonardo exibia partes do corpo para a menina, pois “a prática mostra que o autor de violência sexual” não age dessa forma. “O frequente é o suspeito valer-se de filmes ou fotografias eróticas, mas não do próprio corpo”.

‘Às vezes, eu tinha dificuldade para ir ao banheiro, doía, ardia muito. Saía uma gosma branca da minha coxa’.

Segundo a psicóloga Rozane Fialho, que atende crianças e adolescentes, a generalização não faz sentido, já que esses padrões de comportamento podem variar em alguns aspectos. “Como ela não embasa a resposta utilizando dados, foi uma afirmação sem fundamentação teórica”.

Alguns dias depois do parecer, a assistente social Avelar entregou um estudo em que avaliava negativamente o “estreito vínculo afetivo” e a lealdade que a filha tem com a mãe, porque isso estaria comprometendo a “relação da criança com a família paterna”. Fazendo menção a depoimentos que a menina já havia dado antes, Avelar cravou que “as queixas que a criança expôs no atendimento não condizem com os dados colhidos no decorrer do estudo”.

A psicanalista Iencarelli lembra que não é competência da assistente social se envolver em questões psicológicas e, por isso, o relatório está repleto de suposições para invalidar a voz da menina. “Essa tese de lealdade é apenas uma opinião não científica. O desenvolvimento saudável da criança é um processo contínuo de identificações. Isso não é doença”, criticou. “Quando desconsidera as queixas da menina sem fundamentação, deixa clara a intenção de desqualificar sua palavra, já insinuando que a criança é mentirosa ou fantoche da mãe”.

Na mesma época, a psicóloga Simplício entregou um estudo psicológico em que sugeria o retorno da menina para a casa dos avós e classificava as atitudes de Cássia como abusivas, “apesar de ancorada na hipótese de maus tratos contra a criança”. O estudo também foi elaborado sem ouvir a vítima, sob o pretexto de preservá-la e para “evitar que o suposto abuso seja supervalorizado”.

A advogada Dias concorda que crianças e adolescentes não devem ser ouvidos em processos que envolvem alegação de alienação parental, “porque isso as coloca em uma crise de lealdade. Eu sempre peço que não sejam escutadas”.

Enquanto ainda estava com a guarda provisória da filha, no início de julho de 2019, Cássia a levou ao Hospital Metropolitano Odilon Behrens, em Belo Horizonte. Segundo o relatório enviado ao Conselho Tutelar e assinado pela assistente social Cláudia Yara Rangel e pela psicóloga Arlêta Maria Serra, a criança foi ouvida individualmente, antes da mãe, e deu um depoimento espontâneo. Ela disse que foi difícil o período que ficou com o pai, porque “toda noite ele ia com uma roupa preta […] mexia na minha parte íntima da frente […]. Às vezes eu sentia só a mão dele e às vezes eu sentia uma coisa lisa […]. Eu não abria o olho porque tinha medo […]. Às vezes, eu tinha dificuldade para ir ao banheiro, doía, ardia muito. Saía uma gosma branca da minha coxa […]. A Rita [avó] passava muita pomada para esconder o que ele fez”. Em relação à Cássia, o relatório informou que ela estava “chorosa e com dificuldade de absorver o acontecido com a filha”.

Quatro dias depois do depoimento, a juíza Marixa Fabiane Rodrigues absolveu Leonardo da acusação de estupro de vulnerável feita em 2014, pois entendeu que nada provou a violência sexual. Para ela, o que estava provado “é que as informações que a criança detém de seu suposto abuso advêm única e exclusivamente das informações que lhe são repassadas” pela mãe e pela avó materna. Em outra decisão, nesse mesmo dia, a juíza negou a medida protetiva para a criança, pois entendeu que o discurso dela era “totalmente desconexo e fora da realidade”.

Em março de 2020, Leonardo foi absolvido em segunda instância e, em setembro de 2021, Cássia foi indiciada pela Polícia Civil por denunciação caluniosa. Dois meses depois, a psicóloga Simplício produziu um relatório em que refuta completamente a possibilidade de Cássia ter direito à guarda compartilhada, embora a profissional saiba que a preferência da criança é ficar com a mãe.

O problema, escreveu Simplício, é que a “personalidade litigante” de Cássia, não somente contra o ex-marido, “mas em relação a profissionais que atuaram no processo, pressupõe a sua inabilidade, no presente momento, para exercer o papel de guardiã de uma criança”.

Já o pai, segundo a psicóloga, reúne “condições psicológicas favoráveis ao exercício da guarda”, mas não tem moradia e vive com os sogros, pais da atual esposa. Este seria o único impeditivo, mas Leonardo já resolveu o problema – em dezembro de 2021, informou à justiça que comprou uma casa e reiterou o pedido para ficar definitivamente com a filha, mas o processo ainda está em andamento, e a menina continua morando com os avós.

Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a promotora Andrea Mismotto respondeu que não se manifestará “em respeito ao ordenamento jurídico, que dispõe sobre a obrigatoriedade do sigilo de processos com tal objeto, para proteção da vítima”.

A delegada Isabella Franca não respondeu às perguntas que fiz por meio da assessoria de imprensa do da Polícia Civil de Minas Gerais. A promotora Andrea Mismotto tampouco respondeu às perguntas que fiz por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público de Minas Gerais.

Perguntei ao desembargador aposentado e atual advogado Geraldo Luiz Ribeiro se a sua influência no tribunal contribuiu de alguma forma para obter decisões favoráveis ao seu cliente, mas ele não respondeu. Disse apenas que não poderia “fornecer dados do processo, que tramita em segredo de justiça, para resguardar interesses de menor”.

O depoimento de ao menos quatro pessoas e os dois relatórios psicológicos indicando que um menino fora vítima de abuso não convenceram a juíza, que sentenciou em letras maiúsculas: “abuso NÃO HOUVE”. Ilustração: Terroristas del Amor.

Estupro ou banho vigoroso

Em setembro de 2012, o filho de 2 anos de Marina voltou de uma visita à casa do pai, Lucas, assustado, inquieto e chorando. A criança estava com diarreia e vomitava. Foi a primeira vez que ela desconfiou de possíveis abusos – suspeita reforçada, contou, depois que viu o ânus do filho ferido e dilatado. Entrou em pânico, mas sabia que não podia fazer uma acusação tão grave sem provas.

Dois meses depois, a cena se repetiu – choro, vômito, diarreia e ânus dilatado após outra visita ao pai. Dessa vez, Marina não hesitou. “Perguntei: ‘Papai está mexendo no seu bumbum?’. Ele me respondeu na hora: ‘Tá, e dói muito'”. Ciente de que sua palavra e a da criança não seriam suficientes, ela peregrinou por quatro dias nos hospitais de São Paulo, na tentativa de fazer exames físicos e avaliação psicológica no filho. Segundo a avó materna, porém, foram informadas de que só conseguiriam atendimento depois de registrar queixa na delegacia.

Esse depoimento, reforçado por mais três pessoas, além de dois relatórios psicológicos indicando que o menino fora vítima de abuso, não convenceram a juíza Margot Chrysostomo Corrêa. Com base no laudo do psicólogo judiciário Alexandre Lara de Moraes e no parecer do promotor Alexandre Salem Carvalho, a magistrada sentenciou, com direito a letras maiúsculas: “abuso NÃO HOUVE”.

Um dos relatos aparentemente ignorados foi o da psicóloga da criança em uma audiência com a juíza em 2015. Com décadas de experiência, a profissional havia atendido o menino por dois anos e meio e avaliava que ele demonstrava indícios de abuso sexual. Nas brincadeiras com bonecos masculinos, disse a profissional, ele os “ataca, tranca, joga fora e só continua o jogo quando esse personagem é destruído”. O incômodo era tão grande, continuou a psicóloga, que ele chegava a ter ânsia de vômito quando olhava para o boneco. “Se precisava ir ao banheiro, tinha nojo dele mesmo”.

A juíza perguntou, então, se isso tinha alguma relação com o pai ou se acontecia “por conta da influência da mãe”. A psicóloga respondeu que não havia “nenhuma condição de ele ter sido induzido pela mãe ou por qualquer outra pessoa”. Para a psicóloga, não existia dúvidas de que a criança “passou por vários períodos em que houve uma manipulação anal”. Corrêa não se convenceu e chegou a levantar a hipótese de que o menino podia não ter sido estuprado, mas sim passado por “uma manipulação de um banho mais arrojado”. A resposta da psicóloga foi óbvia: se fosse apenas um banho, a criança não teria esse comportamento.

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Patrimônio dilapidado

“A Lei de Alienação Parental não protege as crianças”, afirmou a advogada Cláudia Galiberne Ferreira, coautora de um livro que contesta a legislação. “Ela foi feita para calar as mulheres de duas formas: na mais branda, para negociar melhor a guarda, a pensão e a partilha dos bens; na mais sórdida, para evitar que as mães denunciem violência e abusos”, criticou.

Marina tinha uma razão a mais para temer que a denúncia contra o ex-marido se voltasse contra ela. Ele é dono de uma empresa de engenharia. Trata-se, portanto, de um homem com dinheiro suficiente para contratar os melhores advogados e enfrentar um longo processo judicial.

O incômodo com homens era tão grande que o menino tinha ânsia de vômito ao olhar para bonecos.

Ela, por outro lado, teve o patrimônio dilapidado. Disse que contraiu cerca de R$ 240 mil em dívidas com honorários de advogados e teve quase R$ 64 mil de sua previdência privada e seus FGTS penhorados para pagar custas dos processos. “Minha mãe até vendeu uma barra de ouro que tinha de herança, para evitar que o apartamento da minha avó fosse leiloado”, acrescentou.

Marina pediu assistência judiciária gratuita, mas o direito lhe foi negado após Lucas alegar que a ex-mulher tinha condições de arcar com as despesas processuais. Ela também precisou desistir da ação de partilha de bens, mesmo tendo mantido união estável por quatro anos, contou. “Para ter esse direito, eu precisaria provar que ele tinha uma cobertura de luxo, de mais de 300 metros quadrados, com sauna e piscina. Como não havia nada no seu nome, meus advogados orientaram que era melhor abrir mão, ou eu seria obrigada a partilhar meus rendimentos financeiros e pagar as custas processuais”.

Hoje, Marina afirma ter apenas o salário de consultora ambiental, porque foi contratada pela empresa da família – de resto, segundo ela, todas as suas economias acabaram.

Desequilibrada, agressiva e dissimulada

Não bastassem as enormes perdas financeiras resultantes do processo, Marina ainda teve seu caráter atacado diversas vezes ao longo da ação. Na sua sentença, em dezembro de 2015, a juíza Corrêa levantou uma dúvida: se a mãe, ao fazer a denúncia, “agiu de forma a prejudicar dolosamente o pai […] ou se sua conduta é fruto de um desequilíbrio emocional fortíssimo”. Acabou concluindo que Marina tinha “um comportamento obsessivo, doentio e extremamente prejudicial” à criança. Foi sua pior derrota: Marina perdeu a guarda do filho para o ex.
A avaliação da juíza foi amparada por um parecer do promotor Alexandre Salem Carvalho – que, por sua vez, se valeu do laudo do psicólogo Alexandre Lara de Moraes. Ele usou as entrevistas feitas com as partes e as informações do Teste de Rorschach, que examina as características da personalidade e o funcionamento emocional das pessoas, para enfatizar apenas os pontos negativos de Marina e reforçar a tese de que ela tem “ideias fantasiosas”. O psicólogo não mencionou, por exemplo, que não foram identificadas desordens de instabilidade emocional na mãe, segundo o teste.

Para sustentar a falsa tese de que ela era desequilibrada, o promotor Carvalho ignorou quatro laudos psicológicos de diferentes profissionais que descartavam transtornos mentais ou de caráter. Segundo o psicólogo Luiz Alberto Hanns escreveu em seu laudo, após 14 sessões de terapia com a mãe, ela sempre se mostrou coerente, lúcida e ética. “Há uma diferença entre estar sob estresse e ser desequilibrada […] no calor da situação e no papel de mãe, seu comportamento é compreensível”, atestou o profissional.

118 ações de alienação parental reproduziram 79 estereótipos desmoralizantes sobre mulheres.

Mesmo assim, o promotor Carvalho defendeu que havia “indicativos da ré ter praticado atos de alienação parental” e que o pai “demonstrou possuir melhores condições psicológicas para exercer a guarda”. Quando viu esse parecer, disse Marina, ​​ela não conseguiu pensar em nada diferente de caça às bruxas. “Me senti sendo queimada na fogueira da inquisição”.

Desequilibrada, dissimulada, agressiva e sedutora são apenas alguns dos termos pejorativos direcionados às mulheres nos processos de alienação parental. O levantamento das pesquisadoras Sheila Stolz e Sibele de Lima Lemos revela que, nas ações analisadas, foram reproduzidos 79 estereótipos desmoralizantes em relação às mulheres. Já em relação aos homens, foram apenas 11, e nenhum com abordagem moral, segundo me disse Lemos – eles são classificados basicamente como imaturos, inseguros, antissociais ou desconfiados.

No processo de Marina, a juíza Corrêa questionou ainda o fato de ela verificar o ânus do menino quando voltava das visitas paternas. Perguntou à psicóloga da criança se isso era comum e se a constrangia. Ela respondeu que é comum, pois as mães ficam preocupadas, e que o excesso pode constranger, mas ela “não via isso” na Marina. Apesar disso, a magistrada escreveu em sua sentença que a preocupação da mãe com o filho confugurava “abuso sexual materno, ainda que de forma não intencional”.

“Evidencia-se nesse caso a descredibilidade da mãe, da avó materna e de três psicólogas”, ressaltou a psicóloga Rozane Fialho. “Seria então um combinado de mulheres para mentir contra um homem?”.

De acordo com a assessoria de imprensa do tribunal de São Paulo, a juíza Margot Chrysostomo Corrêa e o psicólogo judiciário Alexandre Lara de Moraes não poderiam responder às minhas perguntas porque “o processo em questão tramita sob segredo de justiça. Portanto, as informações dos autos são restritas às partes e seus representantes. […] Além disso, os magistrados são impedidos de se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.

A resposta do promotor Alexandre Salem Carvalho foi parecida: “O processo tramitou em segredo de Justiça, o Ministério Público do Estado de São Paulo não vai se manifestar”


Parte 2

PAGANDO BEM, QUE MAL TEM?

Psicólogos lucram com laudos contratados por pais e padrastos suspeitos de estuprar crianças

Profissionais contratados por suspeitos passam por cima de indicativos de abuso sexual e acusam mães de alienação parental.

Quando foi preso acusado de estuprar a enteada de 10 anos, em outubro de 2020, Manoel já respondia a outras três acusações semelhantes. Mas, se dependesse do parecer encomendado por ele à psicóloga Elsa de Mattos, o abusador seria inocentado ao menos das denúncias anteriores – elas não passavam de “criação de falsas memórias provocadas a partir de informações distorcidas”, dizia o documento, assinado pela psicóloga 10 dias antes da prisão. O verdadeiro problema, segundo a análise de Mattos, seria Vanessa, ex-esposa de Manoel.

Ela conta que foi a primeira a denunciá-lo por estupro de vulnerável, em 2016. Aos 12 anos, sua menina contou que o então padrasto a tocava de forma indevida desde os 8, dizendo à criança que aquilo era “coisa de pai e filha”. A adolescente também teria afirmado que o abusador havia tocado os seios de outras duas meninas da família.

Vanessa se separou, denunciou o ex por estupro de vulnerável e avisou as outras mães. Já em 2017, quando soube que a nova namorada dele tinha uma filha, tratou de alertá-la, mas a mulher não acreditou à época. Segundo o parecer de Mattos, Vanessa, “de forma deliberada, transmitiu a sua própria visão dos fatos” não apenas à filha, mas também “às demais crianças, bem como a suas respectivas mães”. Eram ações condizentes com a chamada síndrome da alienação parental, cuja existência é contestada por especialistas. O diagnóstico acabou deixando Vanessa, e não o homem acusado por ela de estupro, na mira do Judiciário.

Essa é a segunda reportagem da série “Em nome dos pais”, que revela quais são os juízes, desembargadores, promotores, psicólogos e assistentes sociais que usam a Lei de Alienação Parental para livrar acusados de estupro de vulnerável ou de violência doméstica, muitas vezes tirando os filhos das mulheres e entregando-os a quem elas denunciaram. Todas as informações foram retiradas de processos que correm em segredo de justiça. Por causa da relevância do tema e de seu evidente interesse público, o Intercept optou por publicar essas histórias, preservando a identidade das vítimas e seus familiares.

A Lei de Alienação Parental se vale de uma teoria já desbancada que diz ser possível programar uma criança para odiar alguém e fazer acusações falsas. Nada disso é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Nacional de Assistência Social e o Conselho Nacional de Saúde também questionam o uso do conceito.

Dos 11 processos que analisei, esse foi o único em que um homem denunciado por estupro foi preso. Mas isso só aconteceu após Manoel ser acusado pela quarta vez. Segundo Vanessa, a mãe da menina não acreditou que ele era um pedófilo, porque continuava solto – condenado a mais de 20 anos pelo estupro da primeira enteada, Manoel recorria em liberdade. Após três anos de relacionamento com a nova namorada, ela ouviu da própria filha que ele se aproveitou de sua ausência para se masturbar na frente da criança. Ela o denunciou à polícia no dia seguinte.

Até Manoel ser preso, segundo Vanessa, a justiça ainda a obrigava a entregar a filha mais nova, fruto do casamento com ele, para visitas com o homem condenado em primeira instância por estuprar a menina mais velha. E era contra a mãe que o Judiciário se voltava: “Eu era constantemente ameaçada de ser acusada de alienação parental. Se atrasasse a entrega da criança, por exemplo, ou se ligasse para pedir que trouxesse ela quando passava do horário”, disse ela.

Laudos encomendados

Tunísia Viana, uma das integrantes do coletivo Mães na Luta, formado por vítimas da Lei de Alienação Parental, acredita que a legislação ainda resiste no Brasil, porque “movimenta um enorme comércio para psicólogos, advogados e assistentes sociais que atuam em processos envolvendo disputas familiares”. A lei acaba rendendo bons lucros a esses profissionais.

De acordo com a tabela de honorários da Federação Nacional dos Psicólogos, as práticas diagnósticas variam de R$ 100 a R$ 860, embora o profissional tenha liberdade para definir preços. Por telefone e sem saber que falava com uma jornalista, a psicóloga Elsa de Mattos, que emitiu o parecer para Manoel, me disse que cobra cerca de R$ 3 mil para esse tipo de serviço, oferecido a todo o Brasil. O laudo contra Vanessa foi feito com a análise de documentos e depoimentos dos processos de violência doméstica e de estupro de vulnerável. Mattos tinha como objetivo “identificar a possibilidade de que a adolescente […] tenha apresentado um relato de abuso com base em falsas memórias”. A resposta da psicóloga foi que tinha, sim.

Em seu parecer, ela disse que o “rompimento violento da relação” entre Vanessa e Manoel fez com que a adolescente criasse uma justificativa para se solidarizar com o sofrimento da mãe. “Uma denúncia de abuso sexual – uma falsa denúncia – poderia estar representando uma forma de punir o padrasto”, escreveu Mattos.

Avaliações psicossociais são indispensáveis para ações que envolvem alegação de alienação parental. São os psicólogos, junto com os assistentes sociais, que oferecem relatórios para fundamentar decisões. Muitas vezes, promotores e juízes apenas repetem o que está nesses documentos, que podem ser feitos por servidores dos tribunais, por profissionais nomeados pelos magistrados ou contratados por uma das partes. De qualquer forma, a análise tem que ser técnica – ou deveria ser.

Por WhatsApp, a psicóloga Elsa de Mattos disse que não tem autorização para comentar o caso e nem para responder às minhas perguntas, pois “esse tipo de questão fere a ética profissional da confidencialidade do trabalho do psicólogo jurídico”.

Documentos, vídeos, áudios e autos de ações judiciais a que tive acesso com exclusividade revelam que alguns psicólogos contrariam os preceitos éticos e as recomendações do Conselho Federal de Psicologia, o CFP. A nota técnica mais recente da entidade orienta os profissionais a utilizarem “abordagens teóricas já consolidadas e reconhecidas no campo da psicologia” nas avaliações e atendimentos em que há alegação de alienação parental. É preciso considerar, diz o CFP, “a inexistência de consenso no campo da ciência psicológica e na categoria profissional quanto ao uso dos termos Síndrome de Alienação Parental e Alienação Parental”. Em muitos pareceres a que tive acesso, contudo, os psicólogos não têm esse cuidado e usam os termos sem qualquer ressalva, levando juízes a punirem as mães sob a alegação de que elas estão praticando alienação parental.

Os profissionais também desconsideram em seus pareceres que há “um viés de gênero” nas denúncias de alienação parental, pois, como diz a nota técnica do CPF, elas “incidem no campo social e jurídico, majoritariamente, sobre mães guardiãs” e podem “ocultar formas de abuso sexual, emocional e psicológico contra crianças e adolescentes”, bem como “ser utilizadas como forma de ameaça por ex-parceiros contra mulheres”.

Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e uma das primeiras magistradas a usar o termo Síndrome de Alienação Parental em suas decisões, antes mesmo de a lei existir, Maria Berenice Dias tem opinião contrária. Para ela, o que falta é qualificação dos profissionais de psicologia. “Tem psicólogas que afirmam indícios de abuso sexual e agem de uma maneira irresponsável, sem ao menos chamar os pais [acusados]”. Dias é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família e, como advogada, também atua em casos defendendo homens que acusam mulheres de alienação parental.

Em nota enviada após o posicionamento de Dias e a publicação da primeira reportagem da série, o instituto reconheceu a gravidade das alegações de mau uso da Lei de Alienação Parental e sua “aplicação equivocada ou defeituosa”. Mas também defendeu que revogá-la “significa enfraquecer a rede de proteção infantil […] atualmente vigente, tornando-a deficiente, o que é verdadeiro retrocesso social”.

Escondido no banheiro, o menino gritava para a psicóloga escolhida pelo pai: “Eu também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não quero que você me force!”. Ilustração: Terroristas del Amor

Criança em último lugar

Júlio havia completado 8 anos há menos de um mês, mas já tinha clareza do que não queria de forma alguma na vida: ver o pai novamente. “Meu pai mexia no meu bumbum e no meu pipi. […] Ele falava, se você contar pra alguém eu vou matar sua família. […] Eu não quero mais ver ele”, disse o menino em dezembro de 2020, segundo o laudo psicológico do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo.

Os abusos teriam começado em 2017, quando ele tinha 5 anos, e durado até 2019. A escola havia alertado que Júlio estava com comportamento sexualizado, e a sua mãe, Thaís, já havia notado que ele estava retraído, agressivo e evitava vestir roupas que mostrassem o corpo, como camisetas e bermudas – preferia calças e casacos. Ela também lembrou que, após 15 dias de férias na casa do pai, o filho disse que o bumbum estava doendo, mas a mãe associou o machucado à falta de higiene. Foi só depois de iniciar um tratamento com uma psicóloga que a criança contou o que o pai fazia.

Em outubro de 2019, a profissional o encaminhou para atendimento na Sociedade Rorschach, uma instituição científica que desenvolve pesquisas e avaliações na área de saúde mental. O laudo reforçou a “hipótese de abuso” que ela já havia identificado. O menino se sentia ameaçado “pela figura paterna/masculina” e acreditava que ela destrói. Por isso, tem “ansiedade e fantasias de mortes”.

Nem assim a criança foi afastada do pai. O contato, mesmo por videochamada, lhe dava crise de pânico. O menino rasgava a própria roupa quando era obrigado a falar com ele e chegou a tentar suicídio duas vezes. Mas tudo isso foi irrelevante para a juíza Leila França Carvalho Mussa, da comarca de Carapicuíba, em São Paulo. Ela não só determinou a retomada gradual do contato entre pai e filho, como afirmou que a psicóloga da criança tinha um “possível comprometimento […] conforme se percebe em trecho de laudo onde a profissional toma partido na questão”.

O contato com o pai dava crises de pânico no menino, que chegava a rasgar as próprias roupas.

A decisão dizia que a psicóloga poderia ser substituída por outro profissional escolhido pela mãe ou pelo pai. Segundo os autos do processo, a escolha da psicóloga Renata Yamasaki foi do pai, e era ele quem pagava, o que só agravou o emocional do filho. Ele falou sobre o medo das sessões com ela para ao menos três profissionais. Em uma gravação feita pela mãe em setembro de 2021, Júlio se recusa a entrar na sala da terapia, enquanto a profissional insiste para saber o motivo. Escondido no banheiro, ele gritava: “Eu não quero! Eu também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não quero que você me force!”

Com o fantasma da acusação de alienação parental rondando, Thaís era obrigada a presenciar cenas assim semanalmente. Caso não levasse o filho à psicóloga que ele tanto rejeitava, teria que pagar R$ 5 mil de multa a cada falta, determinou a juíza Mussa.

Ela só acatou os vários pedidos de Thaís para afastar a psicóloga nove dias após a mãe ter feito a gravação. Por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo, perguntei se a juíza tinha ouvido o áudio que mostrava a criança gritando e chorando para não entrar na sala da psicóloga, mas fui informada que ela não iria se manifestar “fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.

Na gravação, ouve-se Yamasaki dizer que, se não conseguisse concluir seu trabalho, a justiça poderia ordenar que a criança fosse atendida em um lugar “muito ruim”, no qual o pai “pode solicitar as visitas”. Como ver esse homem era o maior pesadelo de Júlio, a frase foi interpretada pela mãe e pela criança como uma ameaça.

A juíza encaminhou o menino para o Projeto Acolhe, da prefeitura de Carapicuíba, após o afastamento de Yamasaki. À psicóloga do município, Júlio disse que a profissional havia dito que “o pai viria buscá-lo e eles o levariam para um lugar muito ruim”. À enfermeira do Caps, o menino disse que preferia morrer a ver o pai.

Segundo um médico registrou em um relatório de consulta em setembro de 2021, Júlio “espontaneamente falou de sua preocupação sobre a possibilidade de ser atendido por uma psicóloga escolhida pelo pai”. Na mesma ocasião, o menino introduziu uma caneta em uma folha de papel, de “forma ríspida”, para demonstrar como o pai o machucou.

Procurada por e-mail e WhatsApp, a psicóloga Renata Yamasaki confirmou o recebimento das minhas perguntas, mas não as respondeu.

Absolvido por falta de provas

Um parecer do Ministério Público, de fevereiro de 2022, listou 10 provas, entre elas depoimentos, laudos psicológicos, relatórios médicos, áudios e fotos do ânus machucado da criança, que levam à mesma conclusão: Júlio teria sido estuprado pelo pai. No mínimo cinco profissionais diferentes atestaram que a criança foi coerente em todos os relatos, além das falas suicidas que revelavam o tamanho do trauma. Por tudo isso, cravou a promotora, “é demasiado improvável que a genitora (sem formação técnica) e uma criança de 7 anos de idade fossem capazes de enganar inúmeros profissionais especializados”. Para ela, “beira a irracionalidade” supor que os profissionais estivessem aliados à mãe a fim de “prejudicar o réu”.

Além de recomendar a condenação do abusador por estupro de vulnerável, ela solicitou medidas protetivas para que a criança não tivesse mais contato com ele. Menos de dois meses depois, a juíza Mussa obrigou Júlio a fazer videochamada com o pai para a “preservação do direito à convivência familiar”.

Também em abril, a juíza Manoela Assef da Silva absolveu o pai no processo criminal e acabou com as medidas protetivas. Segundo ela, o relato de Júlio deve ser considerado “principalmente quanto aos sentimentos de tristeza e sofrimento”, mas “a palavra da criança não pode ser o único elemento de prova”.

Um ano antes da absolvição, em maio de 2021, a juíza Mussa reforçou a necessidade de aproximar pai e filho. Ela nomeou como mediadores um engenheiro e uma advogada que não têm especialização em saúde mental e nem outra qualificação específica para cuidar de uma criança que já havia tentado suicídio duas vezes. Em uma das sessões, o mediador insistiu para que Júlio lembrasse de “coisas legais” com o pai.

Segundo a Lei da Mediação, para atuar como mediador judicial basta ser graduado há pelo menos dois anos em qualquer área e fazer o curso de formação oferecido pelos tribunais. Essas pessoas entram em um cadastro e podem ser nomeadas pelos juízes para atuarem em determinadas causas. Na decisão em que a juíza Mussa informou os nomes dos mediadores no processo de Thaís, não há justificativa para a escolha. Ela informa apenas que eles estão “cadastrados no sistema informatizado”.

A criança preferia morrer a ver o pai e tentou suicídio, mas a juíza decidiu reaproximar os dois.

Ao menos três novos laudos de psicólogos e psiquiatras, feitos entre junho e setembro de 2022, trazem alertas como “não há a mínima condição de ter reaproximação com seu genitor, inclusive online, sob alto risco de suicídio”. Em um dos relatórios, a psicóloga do Projeto Acolhe registrou que Júlio lhe perguntou: “Você gostaria de ver o seu pai de novo se ele fizesse com você o que o meu pai fez comigo?”.

Em outubro, Thaís se mudou de estado e, com isso, o caso referente à guarda foi transferido para uma nova comarca. Lá, ela conseguiu uma liminar que impede a reaproximação, mas o processo segue em andamento. A criança ainda tem pesadelos, como relatou na terapia. Nos seus piores sonhos, o pai volta para abusar dele.

Procuradas por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo, as juízas Leila França Carvalho Mussa e Manoela Assef da Silva responderam que os processos tramitam sob segredo de justiça e que “os magistrados são impedidos de se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.

Terapia até em churrascaria

Bianca foi acusada de alienação parental pela primeira vez em 2017, quando ainda estava grávida. O pai, Jonas, que ela acusa de violência doméstica e de quem havia se separado, fazia questão de estar na sala de parto e entrou na justiça do Paraná para obrigá-la a aceitar sua presença. O pedido foi recusado, mas começou ali uma disputa que já soma 11 ações judiciais. Assim como aconteceu com Thaís, um dos maiores problemas de Bianca foram as psicólogas que atuaram no processo – mas não só elas.

A criança tinha apenas 1 ano e meio e nem falava quando a mãe, a avó e as babás perceberam que ela voltava das visitas paternas com um comportamento estranho. De acordo com a ocorrência registrada em 2019, a menina se jogava no chão, ficava muito agressiva e, em algumas ocasiões, tinha o hálito alcoólico.

Bianca decidiu esconder um gravador no carrinho de passeio da filha. A bebê passa as três horas de gravação calada, e, segundo a denúncia, ouve-se Jonas pedindo para ela olhar o “elefantinho do papai”.

A mãe denunciou a suspeita de abuso e queria que a justiça determinasse visitas monitoradas, mas o juiz Juan Daniel Pereira Sobreiro negou. Ele avaliou que havia rancor recíproco entre os pais e que não era possível identificar claramente no áudio que o pai havia mencionado “o tal elefantinho”. Por fim, afirmou, sem nenhum laudo, que Bianca estava agindo “conforme a malfadada síndrome de alienação parental”. Um mês depois, como Bianca ainda se recusava a entregar a filha, o juiz Sobreiro aplicou multa de R$ 10 mil por cada visita paterna frustrada e ameaçou a mãe com inversão de guarda.

O magistrado nomeou a psicóloga Edith Cristiane Marchiori em maio de 2020 para fazer quatro sessões terapêuticas com as partes e emitir um parecer técnico sobre o suposto abuso sexual ou alienação parental. Como ela não faz parte do quadro de servidores do tribunal, a conta ficou para Bianca, que desembolsou cerca de R$ 2,8 mil – pagou, inclusive, as sessões para o ex-marido, que alegava não ter dinheiro.

Marchiori estava com o cadastro de perita vencido desde 2018 e sequer constava no registro de mediadores do tribunal, contrariando recomendação do Conselho Nacional de Justiça. De acordo com o site Escavador, Marchiori atua como consteladora familiar, hipnoterapeuta e comentarista de programas de TV.

Procurado por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Paraná, o juiz Juan Daniel Pereira Sobreiro respondeu que é vedado ao magistrado se manifestar ou opinar sobre processo pendente de julgamento, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Uma das sessões com Jonas aconteceu em uma churrascaria, onde os dois almoçaram juntos e tiveram conversas amistosas, segundo relatou a babá da criança, também presente. Enquanto almoçava, escreveu a psicóloga em seu relatório, ele “desabafou como sente falta da filha, que se sente incomodado com a presença constante de acompanhantes” e que “se sente vigiado”. Marchiori chegou e saiu da churrascaria no carro de Jonas.

De acordo com a psicóloga Iencarelli, o código de ética da profissão zela pela adequação do ambiente e não há como fazer uma avaliação do estado emocional do paciente nesse tipo de local. Além disso, completou, a intimidade quebra preceitos que facilitam a expressão de ansiedade, culpa ou angústia.

Em dezembro de 2021, com base no parecer de Marchiori, que defendeu a necessidade de “haver respeito ao direito da criança em ter sua mãe e seu pai presentes”, a promotora Leidi Mara Wzoreck de Santana se manifestou favoravelmente às visitas paternas sem supervisão, com pernoite e com direito de o suspeito viajar com a criança. Caso Bianca não permitisse, estaria sujeita a multas e à aplicação da lei de alienação parental.

Questionada, a promotora argumentou que “o posicionamento nos autos foi amparado em provas testemunhais e periciais apresentadas no curso do processo, que apontam para a não ocorrência do suposto abuso”. Já a psicóloga Edith Cristiane Marchiori não retornou os meus contatos.

Desconfiada de possíveis abusos, a mãe colocou um gravador no carrinho da bebê. Segundo a denúncia, ouve-se o homem pedindo para ela olhar o “elefantinho do papai”. Ilustração: Terroristas del Amor

Quando o problema é o Ministério Público

Bianca enfrentou dificuldades com outra pessoa ao longo dos quase seis anos de disputa judicial: a promotora Tarcila Santos Teixeira, que pediu o arquivamento do primeiro inquérito policial sem que a investigação tivesse seguido passos básicos, como a interrogação de Jonas – segundo alegou a Teixeira, ele já havia se manifestado por meio dos advogados, “negando peremptoriamente” as acusações – o que ela considerou suficiente.

A promotora disse ainda que, mesmo se houvesse lesões nas partes genitais da criança “e que elas fossem causadas por uma manipulação não adequada do pai”, isso poderia “ser fruto de assaduras ou má realização da higiene”. Ela também afirmou que era necessário comprovar que “o toque do pai na região íntima da vítima” tinha como objetivo “a busca da satisfação da lascívia”.

Procurada, a promotora argumentou que todas as diligências já tinham sido feitas na fase do inquérito policial e que a “promoção de arquivamento se deu, justamente, em razão da constatação da fragilidade dos elementos indiciários [elementos para que o suspeito fosse indiciado] trazidos na fase investigatória”. Ela também reforçou que “não é o simples toque nas partes íntimas da criança” que configura delito, assim como “nem toda lesão” indica abuso.

Quase três anos depois da primeira denúncia, a criança voltou com hematomas de uma viagem de férias na casa do pai, em São Paulo. A filha de Bianca também teria falado que ele lhe deu várias vezes para comer “cola gosmenta que faz xixi”, além de se recusar a fazer a higienização das partes íntimas. A psicóloga Iencarelli defende que os profissionais da psicologia e do sistema de justiça precisam ficar atentos para esse tipo de relato. “Esse é o vocabulário de que elas dispõem para se expressar”.

Segundo a mãe, a filha teria dito que o pai lhe deu para comer ‘cola gosmenta que faz xixi’.

A mãe registrou nova denúncia em dezembro de 2021, e o exame de lesão corporal indicou cinco pequenas marcas no corpo, principalmente nas pernas. Em fevereiro de 2022, ela pediu o desarquivamento do inquérito anterior, mas a promotora afirmou que a denúncia deveria ser feita em São Paulo, onde as agressões teriam acontecido.

Em resposta ao Intercept, a promotora destacou que “o Juízo da Comarca de Curitiba se revelou incompetente para a investigação e processamento, já que – conforme devidamente fundamentado junto aos autos de inquérito policial –, o sistema penal brasileiro adota a teoria do resultado, determinando que o juízo competente é o do local da infração, independentemente de onde a vítima se encontra, tampouco de onde tramitam outros processos envolvendo as partes”.

Em um relatório psicológico de junho de 2022, consta que há na criança “indícios indicativos de abuso físico e emocional”. Durante as sessões de terapia, a menina disse que o pai era mau, que puxava seus cabelos, batia na sua cabeça e a chutava.

Bianca denunciou as suspeitas de abuso pela terceira vez, e o juiz Leandro Leite Carvalho Campos concedeu uma medida protetiva. Segundo ele, havia “fortes indícios da prática de maus tratos e violência sexual contra a criança”. Campos proibiu o pai de “manter qualquer espécie de contato com a vítima, sua genitora e demais familiares da infante, seja por qualquer meio”. Apenas seis dias depois dessa decisão, a promotora Teixeira se manifestou sugerindo que a mãe estaria revitimizando a criança.

A promotora Tarcila Santos Teixeira já é conhecida por sua atuação em ações judiciais envolvendo crianças. Em 2013, ela foi destaque em uma reportagem do Fantástico, na Rede Globo, pelo trabalho em um processo que retirou sete filhos de uma mesma mãe em Triunfo, no Paraná. O parecer de Teixeira foi favorável à adoção das crianças por estrangeiros. Incomodada com a reportagem, a promotora entrou na justiça e ganhou uma indenização de R$ 30 mil pela ofensa à honra, à imagem e à reputação. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que aumentou o valor da indenização para R$ 350 mil.

Esse e outros processos de adoção no qual Teixeira atuou foram alvos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigou o tráfico de pessoas no Brasil. Ela foi uma das depoentes e precisou se explicar sobre os pareceres. Em 2014, a CPI indiciou quatro pessoas por tráfico humano, mas a promotora não estava entre elas.

Segundo Teixeira, “fora constatado absoluto rigor na observância das disposições legais” em todos processos de adoção em que ela atuou. “Sequer fui acusada de qualquer prática delitiva ou minimamente irregular, sendo que tudo se limitou a uma reportagem sensacionalista e falaciosa que apresentou informações inverídicas e contrárias a todo o conteúdo dos processos”, argumentou.

‘Preocupações excessivas’

Quem também se sentiu prejudicada pelo Ministério Público em um processo envolvendo alegação de alienação parental foi Carolina. Três promotores da comarca de Resende, no Rio de Janeiro, fizeram pareceres que favoreceram Jorge, o pai do seu filho, mesmo após um relatório psicológico de dezembro de 2018 indicar que seu filho omitia o “laço familiar paterno, assumindo o padrasto como seu pai legítimo”.

Esse foi o primeiro alerta de que havia algo errado – a criança tinha 10 anos. No relatório, a psicóloga apontou que ele também apresentava “afastamento da realidade para se proteger”, o que poderia “desenvolver um aspecto tímido ou rígido diante das adversidades”.

A mãe já lutava na justiça para que os filhos – o menino então pré-adolescente e uma menina de 6 anos – não viajassem para a cidade do Rio, onde Jorge morava, nem tivessem que pernoitar com ele. Uma das suas maiores preocupações até então era o contato das crianças com o avô paterno, que havia abusado da própria filha anos atrás, como Jorge confirmou, de acordo com os autos do processo.

A promotora Laura Cristina Maia Costa Ferreira concordou que era necessário resguardar as crianças do avô, mas escreveu em seu parecer que não havia impedimento para o pai levar os filhos ao Rio. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz acatou. Jorge só teria que manter seu pai longe das crianças, mas, segundo ele mesmo admitiu, os filhos falaram com o avô pelo WhatsApp.

Ainda assim, o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira foi contra os pedidos da mãe para reformular as visitas. Para ele, o problema era que Carolina não havia se adaptado “à ampliação da convivência paterna”.

A promotora Ferreira escreveu que não havia “qualquer indicativo da equipe técnica de que os filhos apresentem repulsa à figura paterna”. Segundo ela, “as preocupações excessivas” da mãe poderiam caracterizar alienação parental, porque “causam obstáculo ao exercício da paternidade”.

Prestes a completar 14 anos, em outubro de 2021, o menino já havia bloqueado as chamadas e mensagens de Jorge desde o início do ano. Então, a psicóloga que já atendia o adolescente há cerca de um ano e meio mediou uma sessão dele com o pai, mas o encontro terminou mal.

O menino disse que Jorge não o tocaria e que deveria mostrar sua verdadeira personalidade. Aos prantos, recusou o abraço do pai. Quando o homem foi embora, o adolescente teve coragem de falar o motivo da sua dor – o pai lhe abusava desde que era criança. A violência teria começado quando ele tinha entre 7 e 10 anos anos. Nessa mesma noite, ele contou detalhes para a mãe, dizendo que o pai o forçava a tomar banho com ele, pedia para ver o pênis do filho e manipulava os próprios órgãos genitais.

Diante dos relatos, Carolina pediu à justiça que fossem tomadas providências para proteger também a filha mais nova. A resposta da juíza Maria Elizabeth Figueira Braz se resumiu a duas linhas – “nada a prover, eis que se trata de feito findo, com sentença transitada em julgado”. Dez dias depois, a magistrada decidiu suspender a visita paterna prevista para o fim de semana seguinte, mas adiantou que “não foi possível verificar a presença de elementos que comprovem as alegações”.

Em dezembro de 2021, coube à promotora Aline Palhano Rocha Cossermelli Oliveira se manifestar sobre o pedido da mãe para suspender as visitas paternas à filha. Resumindo todo o problema a uma questão de dificuldade de convivência, a promotora opinou pelo afastamento entre Jorge e o filho, mas sugeriu manter as visitas à menina. A juíza Braz escreveu que ela demonstrava “satisfação com o novo formato familiar”, enquanto o adolescente “não deseja conviver” com o pai. Sobre os motivos que levaram o filho a rejeitar essa convivência, a magistrada não se prolongou.

O menino disse que o pai abusava dele, mas a juíza manteve as visitas da irmã ao homem.

Um relatório psicossocial de março de 2022 – recomendado pela promotora Oliveira para apurar indícios de atos de alienação parental – ouviu Carolina, Jorge, os dois filhos e a psicóloga do adolescente, que foi a primeira pessoa para quem ele contou sobre os abusos sofridos.

O pai disse que só comentou sobre o órgão sexual com o filho para orientá-lo quanto à higiene pessoal e negou que tenham tomado banho juntos depois que o menino cresceu. Já a mãe lembrou que o filho havia falado sobre o abuso quando voltou da psicóloga, que ele chamou o pai de pedófilo e perguntou se algum exame poderia comprovar o abuso. Na entrevista com o adolescente, ele confirmou para a psicóloga judicial tudo que havia dito antes.

À equipe psicossocial do tribunal de justiça, a psicóloga do menino disse que ele já apresentava sinais de síndrome do pânico quando iniciou o atendimento com ela e vinha se afastando do pai.

A promotora Oliveira se manteve irredutível. Ela deu parecer favorável para as visitas paternas à filha, sem supervisão e com pernoites, e sugeriu multa para a mãe em caso de descumprimento. Seu relatório afirma que “não restou demonstrado que o exercício da visitação paterna seja prejudicial a seus interesses”. Por fim, Oliveira sugeriu que a mãe fosse investigada por alienação parental.

Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, as promotoras Laura Cristina Maia Costa Ferreira, Aline Palhano Rocha Cossermelli Oliveira e o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira informaram que não poderiam responder às minhas perguntas, porque “os processos da Vara de Família tramitam em segredo de justiça”. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz tampouco respondeu a nossos questionamentos, e a assessoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também se limitou a dizer que não se manifestaria por o caso correr em sigilo.

O que vem garantindo o distanciamento seguro entre Jorge e a filha, hoje com 11 anos, é uma liminar de junho de 2022 do desembargador Luiz Henrique Oliveira Marques, que permite visitas paternas apenas com supervisão. Enquanto isso, Carolina é investigada por alienação parental.


Parte 3

LEI DE ALIENAÇÃO PARENTAL MATA

'O juiz e o MP me fizeram deixar ele encontrar meus filhos', diz mãe de crianças assassinadas pelo pai

Os filhos de Jane Soares da Silva, Lucas e Mariah, de 9 e 6 anos, foram mortos pelo pai, Mário Eduardo Paulino, em 4 de março de 2019. O casal estava separado desde dezembro de 2015, após um relacionamento marcado por violência psicológica. Ele a ameaçava e a perseguia – mas era ela quem sofria o risco constante de perder a guarda das crianças.

Sob a ameaça de ser denunciada por alienação parental, Silva foi obrigada pela justiça a deixar os filhos encontrarem o pai de segunda a sexta, assim como em finais de semana alternados e feriados. Mesmo alertando inúmeras vezes que o ex-marido era agressivo, ela diz que nunca foi ouvida. “Eu tinha que estar o tempo inteiro correndo atrás de médico, psicólogo, escola e todo tipo de documentos, para provar que tudo que ele dizia era mentira. Já ele, qualquer coisa que falava, juízes e promotores acatavam”.

O terceiro texto da série “Em nome dos pais” mostra que, ao negligenciar as denúncias das mães e as obrigar a entregarem os filhos aos pais agressores, juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais colocam em risco a vida dessas crianças. Os filhos de Silva estão entre as vítimas da Lei de Alienação Parental.

Desde que eles foram assassinados, a mãe se uniu a um grupo de mulheres que luta pela revogação da lei. Por meio de um perfil no Instagram e de reportagens na imprensa, Silva já contou partes da sua história. Agora, o Intercept publica um relato completo.

O depoimento foi editado apenas para fins de clareza.

Eu tinha dois filhos. Lucas, de 9 anos, e Mariah, de 6. Eles foram mortos pelo pai, Mário Eduardo Paulino. Era segunda-feira de carnaval, dia 4 de março de 2019. Incontáveis são as vezes que meu coração grita de desespero, dor, amor e saudade, enquanto ainda espero acordar desse grande pesadelo.

Meu casamento foi marcado por violência psicológica. Mário me ameaçava muito, dizia que ia me matar, que ia me picar e colocar dentro de uma mala – chegou a dizer isso para os meus pais. Ele também os ameaçava, assim como aos meus irmãos e às minhas sobrinhas. Esse abuso psicológico acontecia o tempo todo. Eu achava que ele poderia mesmo fazer alguma coisa comigo. Quando consegui sair de casa, em dezembro de 2015, começou uma perseguição que parecia vingança. Até hoje não encontrei resposta para o que Mário fazia.

Assim que dei entrada no divórcio, ele me acusou de alienação parental. Alegava que eu tinha problemas psicológicos e não tinha condições financeiras de ficar com as crianças, porque eu não trabalhava. Antes disso, porém, já tinha feito várias denúncias contra mim no Conselho Tutelar, alegando que eu não cuidava dos meus filhos. Uma vez, denunciou que Mariah tinha incontinência urinária e que eu não a levava ao médico. Em outra ocasião, por acidente, ela encostou no ferro quando eu estava passando roupa, e ele falou que eu a machuquei. Hoje, percebo que estava preparando o cenário para tomar a guarda das crianças quando eu saísse de casa.

Em junho de 2016, o juiz determinou uma audiência de conciliação, em que fui me senti praticamente obrigada a aceitar tudo que me impuseram. As condições eram deixar o pai buscá-los na escola todos os dias e almoçar ou jantar com eles uma vez por semana. Em finais de semana alternados, ele os levaria para dormir em sua casa.

Quando tudo aconteceu, era uma visita estendida, porque juntava o fim de semana com o feriado de carnaval. Ele pegou as crianças na sexta-feira e, no sábado, ligou dizendo que precisava falar comigo. Eu disse que, quando ele trouxesse as crianças, a gente conversava. No domingo à noite, falei com o Lucas por telefone. Perguntei pela Mariah, e ele disse que ela estava tomando banho. Eu ainda a ouvi brincando no chuveiro.

Na segunda, logo pela manhã, mandei uma mensagem para o meu filho, mas ele nem recebeu. Na hora do almoço, tentei ligar. Mário costumava desligar o telefone das crianças para eu não falar com elas. Então, achei que fosse isso.

À tarde, comecei a ficar muito preocupada, porque nem ele mesmo acessava o celular. A última visualização tinha sido às 4h da manhã. Às 17h, liguei para uma das irmãs dele e falei que precisava que ela o achasse, porque estava acontecendo alguma coisa. Ela falou que já tinha tentando ligar, sem sucesso. Aí eu perdi o chão – ele não me atender, eu já estava acostumada, mas não atender a irmã era outra história.

Por volta de 18h, fui até a casa dele. Tinha acabado de pegar o ônibus, quando a sua irmã me mandou uma mensagem, dizendo para eu esperar pelo pior. Pouco tempo depois, veio a outra mensagem – Lucas e Mário estavam mortos. Mariah ainda foi encontrada com vida, mas morreu no hospital. A partir daquele momento, eu não vi mais nada. Fui socorrida pela população dentro do ônibus e fiquei no meio do caminho entre a minha casa e a dele.

O que aconteceu, soubemos depois pelos exames de sangue feitos nas crianças, é que ele deu bebida alcoólica para elas não resistirem e atirou na cabeça dos meus filhos. Depois, se suicidou da mesma forma. Era por volta das 18h.

Antes, eu tinha planos, conseguia vislumbrar o amanhã. De lá para cá, aprendi que não devemos planejar nada. Enquanto eu tentava falar com meus filhos, eles ainda estavam vivos. Durante todo o dia, estavam trancados em casa, incomunicáveis, mas vivos. Em questão de horas, tudo mudou.

O sistema de justiça tem culpa pela morte do Lucas e da Mariah. Na verdade, foi um conjunto de responsáveis – o Conselho Tutelar, o Centro de Referência e Assistência Social, o Cras, o Judiciário, o Ministério Público. Por causa da acusação de alienação parental, eu tinha que estar o tempo inteiro correndo atrás de médico, psicólogo, escola e todo tipo de documentos para provar que tudo que ele dizia era mentira. Qualquer coisa que ele falava, juízes e promotores acatavam – não precisava provar nada. Simplesmente, falava meia dúzia de balelas e eu tinha que prestar contas.

Foi nesse contexto que o juiz determinou fazermos acompanhamento com uma psicóloga e uma assistente social, mesmo eu dizendo que não fazia nada, mesmo provando tudo, mesmo as crianças contando o que o pai fazia, eu tinha que ir lá nesse acompanhamento compulsório para prestar contas. E era um processo extremamente abusivo, porque eu fui tratada como louca e alienadora o tempo todo.

Quando Mário começou a fazer coisas absurdas, eu sempre denunciava. Ele dizia para as crianças perguntarem onde eu estava e o que estava fazendo. Ele as ensinou a perguntar várias vezes a mesma coisa, para ver se eu entrava em contradição, caso me ligassem e eu não pudesse atender na hora. Meus filhos contaram isso para mim e para a psicóloga.

Uma vez, Mário instalou uma espécie de rastreador no tablet da Mariah, e ela falou que dava para saber o lugar onde a gente estava e que ele acompanhava pelo celular. Em muitas ocasiões, os vizinhos me contaram que o viam parado com o carro próximo de onde eu morava. As pessoas diziam para eu ter cuidado na hora de sair e voltar, para não ficar sozinha.
Ele chegou a picotar todas as roupas do Lucas e da Mariah. Eu tirei foto de tudo. Isso foi colocado no processo, mas o Judiciário passou por cima, como se nada tivesse acontecendo. O Cras também. As instituições optaram por dar credibilidade a ele, e não a mim e às crianças. Era discrepante o tratamento. Minhas denúncias nunca tiveram a mesma atenção.

O Judiciário e o Ministério Público, que dizem estar ali para defender os direitos das crianças, me obrigaram a aceitar ele ter contato todos os dias com elas. Diante de todas as denúncias que eu já tinha feito, era no mínimo para terem pedido um estudo psicológico nosso e, dali, tomar outras medidas. Mas nunca pediram isso. Podiam ter determinado a visita assistida. Foi negligência.

E continuam me negligenciando. Em março, faz quatro anos da morte dos meus filhos e, desde então, eu tento conseguir uma pasta de desenhos do Lucas, que está com a família paterna. Já pedi amigavelmente, mas não me deram. Há um ano e meio, entrei com pedido judicial e até agora não tive resposta. É uma coisa tão simples para decidir e que para mim representa tanto. Ter essa pasta de volta é resgatar um pouco dessa memória. Até isso estão me negando.

Hoje, luto arduamente com outras mulheres pela revogação da Lei de Alienação Parental. Acabar com ela é fazer justiça pelos meus filhos, Lucas e Mariah, e por tantas crianças que também perdem a vida, literal ou simbolicamente, vítimas de uma legislação que protege abusadores e agressores. Nossa luta é mostrar as atrocidades do sistema de justiça, incapaz de julgar e de proteger quem realmente precisa de proteção. Nossa luta é árdua, para não entregar nossos filhos para morrerem.

“A morte recalcula a vida” – essa frase tem tanto a dizer. A morte dos meus filhos me fez ver que muitas vezes fazemos planos, e eles talvez nem se concluam. Desde aquele dia, passei a viver um momento de cada vez. As horas do relógio não são as mesmas. Nada mais é como foi um dia. Vivo constantemente recalculando a rota.

PARTE 4

GLICIA BRAZIL: A PSICÓLOGA QUE FAZ LAUDOS PARA FORTALECER A DEFESA DE ACUSADOS DE ABUSO

Grande defensora da Lei de Alienação Parental, servidora do tribunal de justiça do Rio promete 'parecer psicológico que corrobora a tese da defesa'.

“Entrega de parecer psicológico que corrobora a tese da defesa”: esse é um dos serviços oferecidos pela psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Glicia Brazil. Para contratá-la, o cliente paga no mínimo R$ 1.200. Este minidocumentário sobre sua atuação faz parte da série “Em nome dos pais”, que revela como psicólogos, assistentes sociais, promotores e juízes estão usando a Lei de Alienação Parental para livrar acusados de abuso sexual infantil ou de violência doméstica, muitas vezes tirando os filhos das mulheres e entregando-os a quem elas denunciaram. Brazil, que lucra com essa lei, é uma das suas maiores defensoras.

Na primeira reportagem da série, mostramos que, ao fim dos processos judiciais envolvendo alegação de alienação parental, muitas vezes resta às mulheres a perda da guarda dos filhos, o patrimônio destruído e a fama de louca. Na segunda, abordamos o lucrativo mercado por trás dos laudos psicológicos contratados por acusados de abuso sexual e a atuação de psicólogos forenses e promotores que favorecem esses homens. No terceiro texto, Jane Soares da Silva contou sua própria história: depois de lutar na justiça pelos filhos e perdê-los, assassinados pelo próprio pai, a mãe agora luta para ter de volta a pasta de desenhos do menino, mas nem isso a justiça lhe deu.

Nesta quarta parte da série, mostramos que, enquanto vende laudos fora do tribunal – apesar de o TJRJ afirmar que “NÃO é possível detentor de cargo público atuar como assistente técnico em processos –, dentro dele Glicia ignora depoimentos de crianças nas avaliações psicológicas e recomenda que mães sejam proibidas de verem os filhos, já tendo usado a perda da guarda como uma forma de motivar uma mulher a tratar um transtorno mental que não tinha.

Procurada várias vezes para comentar o conteúdo deste documentário, Brazil disse que não o faria, porque “é falta de ética expor publicamente o teor do laudo que tramita em segredo de justiça”.


PARTE 5

PAIS ACUSADOS DE ABUSO FAZEM LOBBY E INTERFEREM NA LEI DE ALIENAÇÃO PARENTAL, APLICADA CONTRA MULHERES

Encerramos nossa série sobre as injustiças da Lei de Alienação Parental te contando quem são os homens que interferiram no projeto que mudou a legislação.

HOMENS DENUNCIADOS pelas mães de seus filhos por violência doméstica, abuso sexual infantil ou dívida de pensão interferiram diretamente no projeto de lei que alterou a Lei de Alienação Parental em 2022. Ao menos três deles fizeram lobby junto à relatora do projeto, a senadora Rose de Freitas, do MDB, para excluir os artigos que poderiam prejudicá-los. Eles admitiram a intervenção em conversas de WhatsApp às quais o Intercept teve

Este texto encerra a série “Em nome dos pais”, que revelou as injustiças promovidas por juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais com base na Lei de Alienação Parental, sancionada em 2010. Ela se baseia numa síndrome – não reconhecida pela Organização Mundial da Saúde – que diz ser possível programar uma criança para odiar alguém e fazer acusações falsas, como de abuso – algo altamente improvável.

A ONU publicou este mês um relatório em que recomenda que os países proíbam o uso do “pseudoconceito desacreditado e não científico de alienação parental” e de seus “supostos especialistas” em processos de família. Além disso, orienta que as crianças vítimas sejam ouvidas e que os membros do sistema de justiça passem por um treinamento obrigatório sobre o preconceito de gênero, a dinâmica de abuso doméstico e a relação entre alegações de abuso doméstico e de alienação parental.

Mas, por aqui, a lei segue a toda. Um dos homens que disse ter interferido no projeto é Márcio Leopoldo. Ele teve mandado de prisão expedido por dívida de pensão, mas nunca foi preso. Em agosto de 2022, o débito acumulado já era de quase R$ 40 mil.

Na época que o projeto era discutido no Senado, ele comentou em um grupo de WhatsApp que estava “redigindo o trecho do relatório da senadora sobre a mudança de endereço”. Leopoldo alega que um dos atos de alienação que sofreu foi a mudança da mãe da sua filha para outra cidade. O que ele não explicou é que, sem receber pensão, a ex-esposa teve que se mudar para perto da família. “Domino tanto o tema que a nota que eu escrevi foi integralmente aceita”, se gabou.

Em uma rede social, Leopoldo até orienta os homens: “Peça a guarda compartilhada, peça para ficar metade do tempo com a criança na sua casa, peça para não haver pensão em razão do  compartilhamento de gastos, etc”. Em um processo judicial, ele mesmo usa o argumento de que fica com a filha 12 dias no mês para contestar o débito – desde 2020, é o pai dele quem paga a pensão, segundo a avó materna.

Segundo Leopoldo, quem constrói o patrimônio da família geralmente é o homem, que se torna vítima da mulher interesseira. “É o famoso ‘entrou com a bunda e saiu com uma casa'”, escreveu em um comentário no Facebook.

Já André Zanella chegou a ser condenado a 14 anos de prisão por estupro de vulnerável da filha, hoje com 10 anos de idade, mas foi inocentado em instâncias superiores por falta de provas. No processo constam, porém, consistentes relatos da menina sobre os abusos.

Leopoldo e Zanella são bastante ativos nas redes sociais e administram, juntos, grupos de WhatsApp que reúnem defensores da legislação, entre eles o terceiro homem que identificamos, Vinícius Ferreira. Lá, se discutem estratégias de defesa para homens que respondem a diversas acusações, incluindo estupro de vulnerável. Entre 2021 e 2022, debatia-se também formas de influenciar o parecer da senadora, como revelam prints e áudios que analisei.

Foi retirado do parecer a proibição do uso da lei pelo genitor investigado por estupro infantil ou violência doméstica.

Um dos dispositivos propostos pelos coletivos de mães contrárias à Lei de Alienação Parental, retirado do parecer da relatora, era a proibição do uso da lei pelo genitor investigado em “inquéritos e processos relativos à violência física, psicológica ou sexual contra criança e adolescente e à violência doméstica ou sexual”. Esse artigo evitaria que abusadores se beneficiassem da lei.

O assunto interessava diretamente a Zanella e a Ferreira, presidente da Associação Nacional em Defesa dos Filhos pela Igualdade Parental e que chegou a ser acusado de violência doméstica pela ex-esposa. Em uma conversa no grupo APBrasil, Leopoldo defendeu a necessidade de fazer “ações políticas” e disse que Ferreira “foi para Brasília”. Este confirmou: “Essas últimas semanas estão muito corridas. Depois de Brasília, acho que vou dormir três dias seguidos. Na verdade, não. Já tem reunião marcada às 15h com deputados do PT”.

O artigo que o prejudicava foi retirado do parecer. Para a senadora, ele violaria o princípio da presunção de inocência.

Procurado, Vinicius Ferreira escreveu: “Li sua matéria anterior e ela não condiz com a realidade sendo extremamente tendenciosa. A maneira que atuo [é] na defesa do direito dos filhos conviverem com pai e mãe”. Ele acrescentou que, por orientação de seu advogado, não pode falar sobre o tema. Leolpoldo, Zanella e a ex-senadora Rose de Freitas, cujo mandato encerrou este ano, também foram procurados, mas não responderam.

Agora, a luta deles é para impedir a obrigatoriedade de ouvir crianças em processos envolvendo alegação de alienação. A psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Glicia Brazil – de quem tratamos neste minidocumentário – faz parte de um grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça que discute a validade do depoimento delas nesses casos. Ela defende que elas podem distorcer os fatos por influência de um adulto. Em uma interação com Ferreira no Instagram, a psicóloga disse que está trabalhando em um protocolo para impedir que o depoimento de crianças e adolescentes seja considerado relevante.

O lobby em defesa dos homens injustamente favorecidos pela Lei de Alienação de Parental está presente em todas as instâncias.


EXPOSED


EXPOSED

CPF:    031.237.637-57
Nome:   FLAVIA GONCALVES MORAES BRUNO
Mãe:    ANA LUCIA GONCALVES MORAES
Pai:    GERALDO DE OLIVEIRA MORAES
Nasc:   06/07/1971
Idade:  52
Signo:  Câncer
Sexo:   F
Renda:  R$ 36.410,08
CBO:    111325
Cargo:  JUIZ DE DIREITO
CNS:    708005372863528
PIS:    17057687328

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